domingo, 18 de março de 2007

o piano, de cage a milton nascimento - por joão marcos coelho

O piano preparado de John Cage (1912-1992) é uma das provas de que a necessidade é a mãe, se não de todas, pelo menos de algumas das mais instigantes invenções humanas. E o (ou a?) pianOrquestra de Cláudio Dauelsberg é a prova provada de que não há mesmo mais limite algum entre os diversos adjetivos idiotas que seccionaram a música desde meados do século 19, quando a ascensão do mercado provocou a cisão entre música de invenção e música de entretenimento (ou música clássica ou erudita, e música popular). Podem chamar nossa realidade atual do que quiserem – pós-moderna, transmoderna, etc.,etc. O importante é que nem pensamos mais neste tipo de barreiras: a música hoje ou é boa ou é ruim. O piano, preparadíssimo e atualíssimo, é a estrela principal de dois DVDs que estão sendo lançados praticamente ao mesmo tempo. O primeiro, no mercado internacional, intitula-se “John Cage: the works for piano 7”, com Margaret Leng Tan” (existe uma versão em CD, consulte o site www.moderecords.com). O segundo sai aqui no Brasil mesmo, e intitula-se “PianOrquestra – dez mãos e um piano preparado”, com direção artística de Cláudio Dauelsberg, e já está nas lojas.
Um pouco de história
Nos idos de 1940, Cage foi convidado a fazer a música para um balé que excursionaria por algumas cidades americanas. Mas não havia dinheiro para se contratar todos os músicos de percussão (e os instrumentos) e transporta-los de cidade em cidade. “Só há um piano disponível”, disseram-lhe. Engenhosamente, Cage tratou de fazer aflorar no instrumento sua verdadeira vocação: afinal, o piano é essencialmente um instrumento de percussão. Parafusos, borracha, vedacit, plástico, panos, papéis e outros objetos colocados no meio das cordas de um piano normal o transformaram num inédito instrumento. Não se tratava de modificar o piano, mas criar um novo instrumento. Em uma década Cage compôs duas dúzias de peças para o piano preparado, impondo-o como uma das invenções mais instigantes do século 20.Tão instigante que sessenta anos depois um grupo de músicos brasileiros bem informados – e bem formados, pois todos possuem sólida formação musical e conhecem o trabalho de Cage – concebe este(a) pianorquestra, onde cinco artistas múltiplos (pianistas e percussionistas) se atracam com o instrumento devidamente modificado com os mesmos parafusos e borrachas prescritos por Cage seis décadas atrás. Uma havaiana aqui, uma luva ali e correntes de metal acolá demonstram que estamos em 2007.
Duas revoluções
Num e noutro casos, impera a imaginação tecnicamente bem nutrida – a outra ponta que precisa casar-se em pé de igualdade com a necessidade de ocasião. Quando as duas andam juntas, aí sim temos as verdadeiras mães da invenção. Pois de nada adianta querer ser inovador sem estar bem apetrechado do ponto de vista artesanal.O piano preparado – também chamado de “piano bem falsificado” pelos detratores – propiciou a Cage a mais notável de suas primeiras obras, as vinte “Sonatas e Interlúdios” de 1946-48. Embora sejam harmonicamente estáticas, as sonatas construídas formalmente à la Domenico Scarlatti encantam pelos timbres inesperados e fascinantes que arrancam do instrumento e pela variedade percussiva. Antes da partitura convencional propriamente dita, Cage coloca uma página detalhada indicando as preparações. São 45, no total. E atuam sobre altura, duração, intensidade e timbre. Quando sacou que cada execução seria necessariamente diferente, dependendo de cada piano e do modo como se introduzem os objetos, Cage ficou meio chateado. Mas rapidamente passou a gostar desta falta de controle – que seria a chave de toda a sua obra futura, fundada no acaso. O ciclo representa uma virada decisiva: ele constata pela primeira vez que não consegue comunicar suas experiências emocionais através da musica. Começa a questionar a noção de que a música é um meio de o compositor expressar suas emoções. A ênfase transfere-se naquele momento do compositor para o ouvinte – o que, mais tarde o levaria à música do acaso e à completa eliminação da auto-expressão no processo criativo.Naquela década Cage começou a namorar com o misticismo e a filosofia oriental. E aprendeu que a música deve ter um efeito espiritual e ético: seu propósito é “moderar e acalmar a mente, tornando-a suscetível à influência divina”.O DVD de Margaret Leng Tan – que trabalhou diretamente com Cage em sua última década de vida – é exemplar. Além disso, ela mesma explica, passo-a-passo, num ótimo documentário de 33 minutos, como se prepara o piano. E promove uma primeira audição de Cage: as “Chess Pieces” de 1994, recentemente redescobertas, nasceram como um quadro que é um tabuleiro de xadrez (uma de suas obsessões, ao lado dos cogumelos). Em cada um deles, Cage compôs pequenos núcleos de música. São quase 8 minutos que constituem uma revelação, já que a combinação entre eles é obra basicamente da intuição de Tan (é, portanto, apenas uma entre muitas leituras possíveis).
Villa, Tom & Milton
PianOrquestra é o resultado de anos de pesquisa de Cláudio Dauelsberg, Gisele Sant’Ana, Claudia Castelo Branco, Késia Decoté e Jadna Zimmermann. Por meio de 10 mãos e uma preparação específica do piano, faz migrar as técnicas inventadas por Cage para o domínio da música brasileira. Eles surpreendem ao reproduzir com perfeição os timbres de um contrabaixo, de uma guitarra ou um cavaquinho. Isso sem falar na riquíssima percussão exploratória do piano por dentro e por fora. O repertório percorre, em refinados arranjos de Dauelsberg, compositores ditos eruditos como Villa-Lobos (precisa a versão de “Polichinelo” da “Prole do Bebê”) e Cláudio Santoro (ótimas as leituras da fantasia da sonata no. 4 e do Estudo no. 1). Mas centra fogo mais amplo no repertório popular. Não por acaso, “Cravo e Canela” e “Ponta de Areia” de Milton Nascimento, assim como “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim, constituem os pontos mais altos de um DVD cuidadosamente produzido, onde o espectador faz uma verdadeira viagem pelo instrumento, guiado alternadamente pelas 10 mãos. Tudo isso em cerca de 50 minutos, curiosamente o mesmo tempo que duram as sonatas e interlúdios de John Cage. O guru do acaso e da indeterminação certamente abriria um de seus típicos largos sorrisos ao ver um desdobramento desses de seu piano preparado.

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