sexta-feira, 16 de março de 2007

a valquíria de keilberth - por lauro machado coelho

Desde os primeiros compassos, descrevendo a tempestade, tem-se a certeza de que essa será uma interpretação de alta eletricidade. Prevista para ser a primeira versão comercial do Anel do Nibelungo, depois bloqueada pela Decca, para que não prejudicasse o lançamento da integral de sir Georg Solti, a versão ao vivo de Joseph Keilberth, no Festival de 1955, dormitou nos arquivos de Bayreuth durante meio século. Seu lançamento pelo selo Testament está causando furor na Europa e Estados Unidos. E por esta Valquíria, é perfeitamente possível entender por quê.A qualidade da tomada de som é surpreendente, de um relevo excepcional para um registro ao vivo de 53 anos atrás; e os eventuais ruídos de cena são bem menos intrusivos do que, por exemplo, na versão de Pierre Boulez. Não é apenas o fogo que Keilberth investe nas passagens mais dramáticas: ele sabe encontrar, para cada passagem, o tom exato. Com um Todesverkündigung – o encontro dos meio-irmãos antes da batalha – cheio de emoção, contrasta a cena da morte de Siegmund, violenta e desoladora; e a Música do Fogo Mágico, no final da ópera, tem uma incandescência extraordinária.O timbre escuro, abaritonado, do chileno Ramón Vinay faz dele um Siegmund heróico, mas que sabe ser imensamente terno quando declara seu amor a Sieglinde – a holandesa Gré Brouwenstijn, muito feminina e delicada. Vinay ainda está melhor, aqui, do que na versão pirata de 1957, regida por Hans von Knappertsbusch, em que a sua Sieglinde era Birgit Nilsson. Muito persuasivo na narrativa de seus sofrimentos no primeiro ato – em que contracena com o cavernoso Hunding de Josef Greindl – Vinay alça-se a um verdadeiro êxtase amoroso no dueto com a irmã, que desabrocha numa radiosa seqüência do Winsterstürme – Du bist der Lenz.Mas é a dupla Hans Hotter-Astrid Varnay – a mesma que reaparecerá, em 1957, na versão Kna – quem domina a gravação. O Hotter que ouviremos, tempos depois, no registro de Georg Solti, já não terá mais a riqueza de texturas, a perfeita combinação de recursos vocais e precisão na emissão do texto, de que ele dá provas aqui: seja na mistura de frustração e vergonha por ter tido de capitular diante de Fricka (muito bem defendida por Georgine von Milinkovic); seja na fúria ao constatar a desobediência da filha predileta. Um dos momentos mais lancinantes do espetáculo é a dor com que, no final do segundo ato, Wotan se vê obrigado a sacrificar o próprio filho, para manter a promessa feita à sua negligenciada mulher.A interpretação de Hotter é, naturalmente, realçada pela extrema interação que ele sempre teve, no palco, com Astrid Varnay – aqui no auge da forma vocal e, a julgar pelas fotos da montagem, da beleza física. Nessas condições, cada meandro da longa confrontação de pai e filha, no terceiro ato, em que Brünhilde lhe prova ter, na verdade, feito o que o seu coração pedia e, com isso, dobra a sua decisão de castigá-la da pior maneira possível, é simplesmente apaixonante. E a invocação a Loge, para que erga, em torno da filha adormecida, uma muralha de fogo, é de uma extrema ternura.A julgar por esta Valquíria, e pelo entusiasmo com que a crítica estrangeira acolheu o lançamento do Siegfried, tudo indica que este Anel do Nibelungo – que dormitou meio século no fundo da caverna, protegido ferozmente pelo dragão dos interesses comerciais das gravadoras – tem tudo para ocupar um lugar de primeiro plano entre as grandes integrais da Tetralogia.

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