sexta-feira, 16 de março de 2007

o adeus de uma geração - por lauro machado coelho

É toda uma geração que se vai. Primeiro Birgit Nilsson, depois Elisabeth Schwarzkopf, o tenor James King e, agora, a soprano sueca Astrid Varnay. Todos eles nomes ligados à escola germânica e, em especial, à restrita classe dos artistas em condições de interpretar as personagens do universo muito específico – em termos vocais e interpretativos – do drama lírico wagneriano. A Brünhilde e a Isolda da Nilsson; a Eva da Schwarzkopf; o Lohengrin e o Siegmund de King foram modelos, nos quais a geração posterior não deixa de se mirar. Nesse campo, Varnay foi uma das intérpretes mais ecléticas: Brünhilde e Sieglinde igualmente impressionantes; Isolda brilhante, no início da carreira, mas também Fricka de muita autoridade, quando a voz tendeu para o grave, e ela passou a fazer grandes papéis de mezzo – como a Clitemnestra, da Elektra, de Richard Strauss, de que deixou eletrizante documentação em vídeo.Eram cantores cuja carreira evoluiu devagar, num ritmo que respeita a o amadurecimento natural da voz – ao contrário dos cantores atuais que, devido à facilidade de locomoção e às pressões do Box Office, correm de um teatro para o outro, e acabam, muitas vezes, enfrentando prematuramente papéis para os quais ainda não estão prontos. Repassar, por exemplo, o programa do Festival de Bayreuth deste ano é dar-se conta de que nomes novos estão surgindo: Nina Stemme, que cantou Isolda, em estúdio, ao lado de Plácido Domingo; Stephen Gould, que fez Siegmund, aqui na Osesp, no primeiro ato da Valquíria, regido por Ira Levin; Petra Lang, uma interessante Cassandra na segunda gravação que sir Colin Davis fez dos Troianos, de Berlioz; ou Adriane Pieczonka que, a boas interpretações de Mozart e Strauss, acrescentou uma Sieglinde bastante delicada.São artistas que, sem dúvida alguma, têm suas qualidades. Mas estão longe de alcançar o patamar de referência de cantores inigualáveis não só pela extensão ou as características muito especiais do material vocal, mas sobretudo por uma intensidade de interpretação que, no caso de Astrid Varnay, por exemplo, ia da feminilidade de Sieglinde às linhas ásperas e autoritárias da Kostelnicka, na Jenufa, de Janácek (de que ficou a preciosa documentação, em vídeo, de um espetáculo regido, em Munique, por Rafael Kubelík).Por outro lado, a atual situação do canto wagneriano não deixa de nos reservar surpresas agradáveis – e assim é o caso da montagem de fevereiro de 2005, do Tristão e Isolda, no Grand Théâtre de Genebra, que está circulando em DVD pelo selo Bel Air Classiques. A primeira boa surpresa é a regência de Armin Jordan que, à frente do Orchestre de la Suisse Romande, mostra-se um digno membro do seleto grupo de respeitáveis intérpretes wagnerianos (sua única incursão anterior nesse universo tinha sido, em 1981, a trilha para a filmagem do Parsifal feita por Syberberg). Sua leitura é expansiva e cheia de vibração, especialmente no terceiro ato, em que o delírio de Tristão agonizante ganha um relevo todo especial.O timbre mais escuro de Jeanne-Michèle Charbonnet, seus graves redondos oferecem estimulante alternativa à escola germânica, de Isoldas estentóreas e de colorido metálico (Nilsson, Behrens, por exemplo). Bonita, expressiva em cena – ruiva como toda irlandesa deve ser – talvez Charbonnet sofra um pouco com a tessitura implacável do início do dueto de amor – no qual a Birgit Nilsson da versão Böhm é incomparável. Mas faz uma leitura muito envolvente das passagens líricas: o O sink hernieder, Nacht der Liebe, do segundo ato, e principalmente Mild und leise, o monólogo final, de que ela oferece interpretação muito comovente.Ao lado dela, o desconhecido Clifton Forbis também é uma boa surpresa. O timbre abaritonado lembra o de um intérprete como o Suthaus da gravação Furtwängler. É um Heldentenor imponente, e um ator que sugere de forma convincente a evolução psicológica da personagem, do constrangimento inicial, diante do amor reprimido, à explosão da paixão incontida e, depois, ao desvario produzido pela febre e o temor de que Isolda não responda a seu apelo amoroso. Charbonnet e ele compõem com muita precisão o par centra.Se na gravação Pappano, com Domingo, a japonesa Mihoko Fujimura não impressionava especialmente, no palco a sua Brangäne obtém um rendimento bem melhor, pois ela é uma boa atriz. Albert Dohmen, o bom Kurwenal, é conhecido de nosso público: ele esteve em São Paulo, em 1995, fazendo Wolfram na montagem do Tannhäuser. Vocalmente, Alfred Reiter está longe de ter o carisma de um René Pape ou de um Kurt Moll; mas seu rei Marke, mais velho e de aspecto frágil, é dramaticamente verossímil, de uma forma como esses outros cantores não chegam a ser.Sobretudo, numa época em que as montagens internacionais nos expõem a soluções discutíveis e, com freqüência, de mau gosto, o espetáculo de Genebra agrada pela concepção moderna, mas funcional, de Olivier Py, apoiada em bons cenários e figurinos – de estilo intemporal – desenhados por Pierre-André Weitz: uma estrutura de metal e néon que sugere o navio; e o quarto de Isolda, no segundo ato. Mas, principalmente, muito curiosa é a idéia de colocar o leito de Tristão no centro de uma piscina (uma alusão à ilha de Kareol), da qual emergem as figuras que povoam seus pesadelos, dando ao terceiro ato uma ambientação onírica particularmente eficaz.

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