sexta-feira, 16 de março de 2007

janet, lucy, lucia - por sérgio casoy

Janet Dalrymple devia ter pouco mais de vinte anos quando morreu em 1669. Ela pertencia a uma família importante. Seu pai James, o primeiro Visconde de Stair, foi um dos jurisconsultos mais respeitados da história da Escócia, eminente professor de leis na Universidade de Glasgow. Suas já extensas propriedades cresceram ainda mais quando ele se casou com Margaret Ross, herdeira de Balneil em Wigtonshire. A geniosa Lady Margaret viveu até idade avançada, e granjeou fama como defensora inflexível da prosperidade e prestígio da casa Dalrymple, a qual, nos duzentos anos seguintes, haveria de dotar a nação escocesa de uma série notável de militares, literatos, políticos e advogados. Como não se conhece nenhum retrato de Janet, eu, pessoalmente, costumo imaginá-la como uma típica beleza escocesa daqueles anos, frágil e delicada, de tez muito branca e uma longa cascata de cabelos loiros – quem sabe ruivos – caindo pelos ombros, a emoldurar um rosto de faces rosadas e grandes olhos claros sempre assustados. Sem que a família dela soubesse, Janet e o jovem Lord Rutherford, membro da nobreza menor e praticamente sem dinheiro, se apaixonaram perdidamente e juraram pertencer um ao outro. Juntos, quebraram uma moeda de ouro, o que equivalia a um compromisso solene. Janet – segundo se disse depois – invocara sobre sua cabeça todos os demônios do inferno caso viesse a romper o noivado. Mas Mamãe Margaret, que acreditava piamente ser a submissão universal à sua vontade um seu direito divino, tinha planos muito diferentes, e combinou o casamento da filha com Lord David, filho e herdeiro dos ricos Dunbar de Baldoon, que além de sangue azul nas veias possuíam vastas propriedades na mesma Wigtonshire onde Lady Margaret já possuía grandes extensões de terra recebidas por herança. Nada mau, para os dois lados, aumentar o latifúndio através do casamento. Tão ocupadas estiveram as duas famílias em acertar os detalhes do contrato que se esqueceram de avisar a noiva, a qual, quando finalmente soube, se recusou, alegando já estar comprometida com Rutherford. A mãe, furiosa, inventou uma desculpa esfarrapada segundo a qual qualquer noivado que não tivesse sido aprovado pelos pais não tinha valor, e descartou Rutherford sem a menor cerimônia através de uma carta seca. Ele respondeu indignado: conhecia seu direito, e só aceitaria a quebra de compromisso se a ouvisse dos próprios lábios de Janet. Lady Margaret foi obrigada a concordar com a visita de Rutherford a Janet, mas com a condição de que ela também estivesse presente ao encontro. Janet, apavorada, recitou tudo que sua mãe lhe havia ensinado e dispensou o namorado. O jovem lorde perdeu as estribeiras. Atirou com raiva sua meia-moeda aos pés da ex-noiva, xingou a mãe, amaldiçoou a filha e toda a família e saiu batendo a porta com força para nunca mais voltar. E Janet, completamente apática, muda, foi conduzida ao altar como um autômato, sem vontade própria, com o olhar perdido na distância. A cerimônia aconteceu em 24 de agosto de 1669, seguida por uma grande festa. Quando as danças começaram, o novo casal, como de praxe, retirou-se para a câmara nupcial para consumar o casamento. Não demorou muito tempo para que um grito pavoroso, um uivo de gelar o sangue atravessasse as paredes do castelo e chegasse até o salão de baile. Percebendo que o grito provinha do quarto do casal, os parentes mais próximos apressaram-se a arrombar a porta, e se depararam com uma cena estarrecedora. Caído próximo ao limiar da porta, David Dunbar agonizava numa poça de seu próprio sangue. Tinha sido apunhalado pela noiva. A pobre Janet, que nada vestia a não ser uma camisola de tecido fino empapada de sangue, estava encolhida num canto próximo à chaminé da lareira, com um estranho sorriso fixo no rosto, a murmurar frases sem nexo. A infeliz criatura não havia suportado tanta pressão. Enlouquecera completamente. Janet Dalrymple jamais recuperou a razão e morreu poucos dias depois, em 12 de setembro. Lord David, ao contrário do que se esperava, sobreviveu aos ferimentos. Por via das dúvidas, nunca mais se casou, e o fim de sua vida foi, no mínimo, prosaico. Doze anos depois, David Dunbar, literalmente, caiu do cavalo. Durante uma viagem, sofreu uma queda de sua montaria e quebrou o pescoço. Cento e cinqüenta anos após os tristes eventos que levaram à morte de Janet, Sir Walter Scott, sempre à cata de argumentos para escrever mais uma daquelas novelas de fundo histórico ambientadas em sua Escócia natal que o fizeram rico e famoso, deparou-se com a crônica daquela tragédia e resolveu transformá-la num romance. Como os Dalrymple, na primeira metade do século XIX eram ainda muito influentes e atuantes em vários setores do governo, Scott, extremamente cauteloso, resolveu evitar qualquer possibilidade de um processo legal. Assim, trasladou sua narrativa do sudoeste da Escócia, perto da fronteira da Inglaterra, onde os fatos realmente aconteceram, para o extremo oposto do país, o sudeste, nas montanhas de Lammermoor, e batizou seu livro como The Bride of Lammermoor (A Noiva de Lammermoor). Alterou também a cronologia da história, trazendo-a alguns anos para a frente, para o período imediatamente anterior à unificação entre Inglaterra e Escócia, durante o reinado de Guilherme III de Orange e sua esposa Maria II da Inglaterra, ambos protestantes, embora ela fosse filha do rei católico Jaime II Stuart. E como uma mera tentativa de aumentar o patrimônio, embora real, não parecesse ao autor da novela motivo suficiente para justificar uma tragédia de amor e sangue destas proporções, Scott, de olho no público, resolveu recontar, desta vez em trajes escoceses, a história de Romeo e Julieta. Janet transformou-se em Lucy Ashton, filha de Sir William e de Lady Ashton, enquanto Rutherford tornou-se Edgar Ravenswood, cuja família, por motivos políticos e religiosos, é inimiga mortal dos Ashton, que inclusive ocupam, no momento da narrativa, o castelo que um dia pertenceu aos ancestrais de Edgar. Como todos já sabem, Lucy e Edgar se apaixonam. Os Ashton, porém, em busca de proteção política em difíceis tempos de mudanças, forçam o casamento de Lucy com Lord Arthur Bucklaw, um inimigo político e pessoal de Edgar. Após o casamento, Edgar desafia o novo marido e o irmão da noiva para um duelo no dia seguinte. Tal duelo, entretanto, jamais se realizará: durante a noite de núpcias, Lucy apunhala o marido, mas os médicos conseguem salvá-lo. Logo a seguir, a jovem morre enlouquecida. Edgar sem saber de nada, ao cavalgar de madrugada para o local do duelo, é tragado por uma poça de areia movediça e desaparece para sempre, cumprindo uma antiga – e sinistra – profecia. Com seus fantasmas, mistérios e torres em ruínas, The Bride of Lammermoor é um típico exemplo de romance gótico, gênero de novela que floresceu entre o final do século XVIII e o início do XIX entre os europeus de língua inglesa, cujo grande representante é o Frankenstein (1818) de Mary Shelley. No ano de 1819, quando a novela de Scott foi publicada, o romantismo firmava suas raízes no âmbito da ópera italiana. Pouco a pouco, os teatros líricos da península foram se despedindo do classicismo, cujos argumentos tinham por praxe fazer com que a razão triunfasse sobre as emoções, encerrando a ópera com uma lição de moral e um final feliz sempre que possível, e passaram a abraçar cada vez com mais força a explosão romântica. De repente, fazer um personagem jogar a vida por uma paixão e morrer ou matar por amor e ciúme, encerrando o espetáculo de forma trágica e sangrenta – embora, no princípio, cuidando para que as mortes ocorressem atrás do palco afim de não chocar o público –, passa a estar na ordem do dia. Vai-se abandonando o mundo greco-romano que foi moldura das óperas barrocas e clássicas, e se desenha uma tendência a escolher argumentos de fundo histórico ambientados na Europa num período compreendido, na grande maioria das vezes, entre a Idade Média e o final do século XVII. Sobre este pano de fundo, os protagonistas se debatem ao sabor do vendaval de emoções descontroladas, amando, odiando, enlouquecendo e lutando. Dentro desta linha, consolida-se, de forma lenta e firme, uma preferência do público e dos operistas italianos pelos romances ambientados na Inglaterra e na Escócia, que são, nos libretos, tratados com muito pouco rigor histórico e geográfico, fazendo daqueles países, muitas vezes, exóticas e misteriosas regiões. Há exemplos dessa ambientação já nas óperas dos proto-românticos Giovanni Simone Mayr (Ginevra di Scozia, 1801; La Rosa Bianca e La Rosa Rossa, 1813) e Gioachino Rossini (Elisabetta Regina d’Inghilterra, 1815; La Donna del Lago, 1819), e também nas óperas dos primeiros românticos italianos como Michele Carafa (Elisabetta di Derbyshire, 1818) e Carlo Coccia (Maria Stuart, Regina di Scozia, 1827). Os dois expoentes da geração de compositores seguintes tampouco deixaram de musicar libretos passados na Escócia ou Inglaterra. Vincenzo Bellini estreou La Straniera em 1829 e I Puritani em 1835, enquanto o fértil Gaetano Donizetti compôs, entre outras, Alfredo il Grande (1823), Emilia di Liverpool (1824), Il Castello di Kenilworth (1829), Anna Bolena (1830), Rosmonda d’Inghilterra (1834) e Maria Stuarda (1835). As obras de Sir Walter Scott eram muito conhecidas e estavam na moda na Itália da primeira metade do século XIX. Elas continham exatamente as intrigas e os contrastes de que os operistas do romantismo necessitavam. Serviram de base para uma infinidade de óperas compostas1 em vários paises europeus. Não é de se espantar, portanto, que Donizetti escolhesse La Fidanzata2 di Lammermoor, a tradução italiana do livro de Scott, como tema para a nova ópera que ele tinha de estrear em julho de 1835 em cumprimento de um contrato assinado com o Teatro San Carlo de Nápoles. Era um assunto perfeito. A violência das paixões geradas por um amor impedido de realizar-se pelo antagonismo de duas famílias inimigas estimulava a fantasia criativa do autor, como ele próprio sempre afirmou3. Além disso, a narrativa não apresentava quaisquer problemas de lesa-majestade ou de agressão à igreja que pudessem despertar o olhar desconfiado da censura. Contava ainda o fato de que o argumento era conhecido, já havia servido, apenas na Itália, para três óperas anteriores, Le Nozze di Lammermoor de Carafa (1829), e duas La Fidanzata di Lammermoor, respectivamente criadas por Luigi Rieschi em 1831 e por Alberto Mazzucatto em 1834, e, portanto, bastante presentes na memória do público de ópera. Aquilo que pode parecer ao espectador de hoje algo monótono, a repetição do argumento, para os italianos da primeira metade do século XIX funcionava justo ao contrário. O interesse maior do público focava-se no canto, nas possibilidades que a partitura criava para que os intérpretes pudessem exibir suas habilidades canoras e extasiar os freqüentadores do teatro. Por isso, tanto melhor quanto mais conhecido o argumento, já que assim, ninguém teria de perder tempo em entender uma nova história e podia ficar atento ao desempenho dos tenores e sopranos. Reutilizar argumentos era uma prática antiga e corriqueira. Basta lembrar que antes da versão definitiva de Rossini, O Barbeiro de Sevilha teve nada menos de dez versões, e o maior libretista do classicismo, Pietro Metastasio, escreveu só 27 libretos, cada um dos quais utilizado muitas vezes. Alguns deles chegaram a servir de base para sessenta ou setenta óperas, sempre com o mesmo título. Donizetti teve a felicidade de ter como libretista o napolitano Salvatore Cammarano, que além de poeta inspirado e experimentado, exercia no Teatro San Carlo – onde Donizetti era diretor artístico – uma função equivalente à do atual diretor de cena. Tinha grande experiência de palco, sabia o que funcionava e o que não funcionava, e compreendia como poucos a essência do melodrama romântico italiano, do qual seu poema Lucia di Lammermoor é um dos mais perfeitos ícones. Versos como Regnava nel silenzio/Alta la notte e bruna; Verrano a te sull’aure/I miei sospiri ardenti/Udrai nel mar che mormora/l’eco de’miei lamenti e Tu che a Dio spiegasti l’ali/O bell’alma innamorata4, túrgidos do melhor espírito do romantismo, ao associar o íntimo dos personagens às forças da natureza como se essa fosse uma caixa de ressonância do estado de espírito dos protagonistas naquele determinado momento, tiveram o condão de induzir Donizetti a conceber melodias inesquecíveis para musicá-los. Estes e outros trechos memoráveis desta ópera, nascidos do casamento perfeito entre os versos do libretista napolitano e a música do fecundo bergamasco, hoje fazem parte da memória coletiva dos amantes de ópera. São aquelas passagens sempre presentes que todos levamos no cérebro e no coração. O lado prático de Cammarano não era menos brilhante. Num prodígio de compressão, o poeta-encenador eliminou vários personagens principais ao transformar o livro de Scott em ópera, barateando imediatamente a produção e permitindo que a ópera continue sendo montada ainda hoje. Cammarano fundiu o pai de Lucy e seus dois irmãos em apenas um irmão mais velho, Enrico, forma italianizada do Henry Ashton original. Além disso, o libretista teve visão suficiente para matar e enterrar Lady Ashton pouco antes da ópera começar, fato que, além de eliminar mais uma personagem, permitiu que se desenvolvesse um corolário importante, situando na morte da mãe a origem do crescente estado maníaco-depressivo da heroína que terminará por levá-la à total insanidade. Como de costume nas óperas italianas, os outros personagens também tiveram seus prenomes “nacionalizados”. Arthur Bucklaw virou Arturo, o que aparentemente lhe trouxe azar, pois ao contrário da história real e do livro de Scott, ele morre apunhalado na noite de núpcias. Edgar tornou-se Edgardo di Ravenswood, e sua amada, que nascera Janet e já fora chamada de Lucy Ashton, transformou-se finalmente em Lucia di Lammermoor, nome através do qual atingiu a imortalidade. No início daquele mesmo ano, Donizetti fora a Paris a convite do sumo Rossini, então diretor do Théâtre-Italien. Rossini havia comissionado tanto a Donizetti quanto a Bellini uma nova ópera para aquela temporada. Donizetti compôs o drama veneziano Marin Faliero, que embora de qualidade e relativamente bem-recebido, teve seu sucesso completamente eclipsado pela estréia retumbante da derradeira ópera de Bellini, I Puritani. Foi a sensação da temporada, com a famosa cena de loucura de Elvira, a principal personagem feminina, que Bellini calcou, segundo ele próprio, na protagonista de Nina ossia La pazza per Amore (1789), de Giovanni Paisiello. Tanto Nina quanto Elvira enlouquecem quando o namorado as abandona, mas recuperam a razão com a volta deles, e as óperas terminam com final feliz. É preciso entender que a loucura, dentro dos padrões da ópera romântica, não era tratada exatamente como uma doença, mas sim como uma espécie de fuga, uma viagem a um local mental onde os espíritos sensíveis e frágeis, principalmente os femininos, submetidos à pressão irresistível dos acontecimentos externos, buscavam um refúgio que lhes permitisse repousar e proteger-se. A loucura era como uma casca, um escudo protetor. É por isso que, quando a causa responsável pela loucura era removida – como nos dois exemplos acima – a personagem voltava ao normal. Mas quando, como no caso da Lucia di Lammermoor, o motivo da loucura não pode ser eliminado – o casamento com Arturo é irreversível – o desfecho se encaminha fatalmente para uma tragédia, para un fatto di sangue. Quanto ao aspecto vocal, numa nítida herança do virtuosismo barroco, os desvarios de uma mente que divaga são sempre magnificamente associados – com o tempo, tornou-se uma exigência do público – ao chamado canto fiorito, à coloratura, com todo o seu pirotécnico desfile de volatas, gorjeios, portamentos e vocalises arrematados por notas sobreagudas que fazem a delícia de quem vai ao teatro. Donizetti estava presente à estréia de I Puritani, foi testemunha ocular do sucesso que a cena de Elvira obteve. Embora não exista nenhum documento escrito que o comprove, não me parece ser mera coincidência a semelhança entre a maneira como as cenas de loucura de I Puritani e de Lucia di Lammermoor se desenrolam. É exatamente o mesmo esquema: o baixo canta sua única ária importante, na qual descreve o estado mental em que a jovem heroína se encontra, preparando o público para a entrada da grande – e longa – scena do soprano, que surge logo a seguir, desvairando-se em intrincadas coloraturas sob a vista estarrecida dos outros personagens e do coro. É muito claro para mim que Donizetti, arguto observador, incorporou o que havia de melhor no trabalho de Bellini, adaptando-o – com muito sucesso, diga-se de passagem – à sua Lucia. Deve ter sido ele a pedir a Cammarano para criar uma cena nestes termos. Afinal, durante os 38 dias que levaram para compor Lucia, os dois trabalharam quase sempre na mesma sala, lado a lado, embora durante muitas horas, os únicos ruídos que se ouviam eram o de suas penas e o farfalhar das páginas que o libretista, metódico e contínuo, ia passando para o velocíssimo compositor. Apesar de cumprido o prazo previsto, a burocracia interna do Teatro San Carlo acabou mudando a estréia de julho para 26 de setembro de 1835. A recepção – um dos maiores sucessos da carreira de Donizetti – pode ser avaliada por um trecho da carta que o autor escreveu a seu editor três dias depois da estréia: “Permita, amigávelmente, que eu me envergonhe e te conte a verdade. [A ópera] agradou, agradou muito, se me é lícito acreditar nos aplausos e nos cumprimentos recebidos. Fui chamado ao palco muitas vezes, e o irmão de Sua Majestade Leopoldo, que assistiu e aplaudiu, me fez os mais lisonjeiros elogios. Na segunda noite, aconteceu algo inabitualíssimo em Nápoles: no final [do segundo ato], depois de grandes gritos de ‘viva’ ao adágio, Duprez, na maldição, obteve enormes aplausos antes da stretta.[...] A Tacchinardi [Lucia], Duprez [Edgardo], Cosselli [Enrico] e Porto [Raimondo] portaram-se muitíssimo bem, e especialmente os dois primeiros, que foram portentosos”. Até a primeira metade do século XX, costumava-se escolher para o papel de Lucia um soprano de coloratura, que entendemos como um soprano do tipo leggero com natural facilidade para o canto ornamental. Era a concepção original de Donizetti, que escreveu o papel sob medida para Fanny Tacchinardi-Persiani. Grandes Lucias foram, nessa linha, Adelina Patti, Luisa Tetrazzini, Amelita Galli-Curci, Toti dal Monte, Lily Pons e Anna Moffo, entre tantas outras. Mas o surgimento do fenômeno Maria Callas, na década de 1950, deixou muito claro que o papel não é domínio exclusivo dos sopranos de coloratura; pode ser atribuído também a sopranos com coloratura, embora de voz mais escura, mais dramática, que os italianos classificam como drammatico d’agilità. Basta lembrar que o soprano Giuseppina Strepponi, futura senhora Giuseppe Verdi, arrancou aplausos do público do Teatro Alla Scala cantando a parte de Lucia muito pouco tempo antes de estrear como a extremamente dramática Abigaile no Nabucco. Embora o soprano ocupe o papel mais importante da ópera, Lucia é sempre uma grande oportunidade para que o tenor exiba seus dotes. O papel de Edgardo tornou famosos muitos tenores do passado. Ainda no século XIX, Napoleone Moriani foi cognominado de il tenore della bella morte, porque morria de forma bonita, emocionante no final da Lucia. Como tinha nascido em Florença, foi chamado também de il cigno dell’Arno, o cisne do Rio Arno. O cisne como se sabe, canta antes de morrer. Pouco mais novo do que ele, Gaetano Fraschini viu sua fama disparar quando, em certa récita de Lucia, num procedimento que nunca mais abandonou, caprichou no lá agudo fortíssimo que a partitura indica para o tenor na cena em que Edgardo amaldiçoa Lucia e sua família. A imprensa descreveu essa nota como “o som de um prato de prata percutido por um martelo também de prata”. Foi o quanto bastou para que o público apelidá-lo de il tenore della maledizione, o tenor da maldição. A identificação entre Fraschini e a praga rogada por Edgardo tornou-se tão completa que, alguns anos depois, quando Verdi escolheu Fraschini como primeiro intérprete de seu Stiffelio, não hesitou em incluir uma maldição com a mesmíssima nota lá, fortíssima, para que o tenor pudesse brilhar. Após os primeiros cinqüenta anos de Lucia, o público, embora não totalmente, perdeu o entusiasmo inicial pela obra-prima de Donizetti, fascinado pelo wagnerismo, pelo verismo e por outros “ismos”. A ópera foi, no início do século XX, fortemente mutilada. Muitos teatros chegaram ao exagero de adotar como prática comum fazer cair o pano e mandar o público para casa após a cena de loucura. A grande cena final de Edgardo, aquela em que ele se apunhala ao saber da morte de Lucia, só foi restaurada depois que o tenor Enrico Caruso, com toda sua autoridade, se recusou expressamente a pisar o palco do Metropolitan de Nova York para participar de uma Lucia aleijada. Caruso, viga-mestra do teatro, foi prontamente atendido. Sorte de quem teve a oportunidade de ouvi-lo cantar Tombe degli avi miei e Tu che a Dio, trechos que ele nunca gravou. Embora a maioria das óperas de Donizetti tivessem sido postas para hibernar no começo do século XX, Lucia di Lammermoor, ao lado de L’Elisir D’amore e de Don Pasquale, jamais desapareceu do repertório, e hoje é interpretada com freqüência. Gosto de pensar que às vezes, suas melodias sublimes se dirigem dos teatros para alguma região desconhecida do cosmos, levando um pouco de conforto e consolo à alma da suave Janet Dalrymple, que morreu de amor.

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