quarta-feira, 25 de abril de 2007

budapest festival orchestra, fischer - crítica de lauro machado coelho

Elegância, transparência de texturas, clareza de articulações, entrosamento entre os quatro solistas – estas foram as qualidades que, de imediato, se evidenciaram na Sinfonia Concertante em Mi Bemol Maior K 297b, de Mozart, escolhida por Iván Fischer para iniciar o programa de segunda-feira, dia 16, na Sala São Paulo, da Budapest Festival Orchestra, que abriu a temporada deste ano da Sociedade de Cultura Artística. Interação entre os instrumentistas é essencial nesta peça em que, recusando-se a tratá-los separadamente, Mozart estabelece, entre os solistas, um diálogo denso mas constantemente flexível. Foi o que mostraram Ludu Carmel e Ákos Ács, no episódio central, para oboé e clarineta, do Allegro inicial, apoiados pela trompa de Zoltán Szöke e pelo fagote de Tamás Benkócs. Os solistas desenrolaram com delicadeza a resplandecente tapeçaria sonora do Adagio. Mas o que mais encantou foi a assumida leveza e alegria da execução, no insólito Andantino final, cujas dez variações, sobre um tema popular de ritmo dançante, eles executaram com um visível prazer em estar fazendo música juntos. A riqueza de sonoridades e a precisão da regência de Fischer foram um bom trailer para o que se poderia esperar do grande desafio da noite: a Sinfonia nº 7 em Mi Maior A 109, de Anton Bruckner. Aqui, realmente, Iván Fischer deu provas de ser um regente de primeira linha, na forma cuidadosa como utilizou os naipes muito equilibrados da Budapest Festival Orchestra – cordas opulentas contra metais muito brilhantes (em especial as trompas e as tubas wagnerianas, que Bruckner utiliza pela primeira vez na Sétima) – para trabalhar os amplos blocos do discurso sinfônico. Rigor na escolha dos andamentos e, principalmente, no balanceamento das gradações dinâmicas, resultou em momentos eletrizantes como a ampla coda do Allegro moderato, sobre o belíssimo tema com que a sinfonia se inicia. Incandescente núcleo emocional da Sétima – elegia para o bem-amado Richard Wagner, que morreu em 1883, durante a composição da mi maior – o Adagio foi feito com grande intensidade. Fischer usou a versão inicial da partitura, sem a polêmica batida de pratos incluída a pôsteriori, por Bruckner, no clímax do movimento; mas isso não diminuiu em nada o efeito dramático desse trecho, com o qual o tumultuoso Scherzo – de um tom popular tipicamente bruckneriano – formou um contraste de grande impacto. Foi com um misto de nobreza e energia controlada que Iván Fischer e a Budapest Festival Orchestra realizaram o Finale: bewegt doch nicht schnell (movimentado, mas não muito rápido), de sólida arquitetura. E, como no primeiro movimento, levaram esse encerramento da peça a uma coda espetacular, em que se reafirmou, triunfante, o tema inicial. No extra – uma das danças populares recolhidas por Béla Bartók –, as cordas passaram um contagiante atestado da qualidade desses instrumentistas húngaros, responsáveis por uma apresentação de alto nível, que deve ter se repetido no segundo concerto, em que foram interpretadas obras de Léo Weiner, Schumann e Beethoven.

sinfônica brasileira, cohen, minczuk - crítica de lauro machado coelho

Nas mãos de Roberto Minczuk, seu atual diretor artístico, a Orquestra Sinfônica Brasileira parece estar realmente superando a fase crítica com que se debatia tempos atrás. O que a OSB demonstrou, quarta-feira, no primeiro da série de quatro concertos que vai apresentar no Teatro Alfa, foi um equilíbrio muito maior entre os naipes, um desempenho muito consistente dos metais e madeiras, contrapostos às cordas, um nível homogêneo de execução que vai deixando rapidamente para trás as irregularidades de um passado recente.E o primeiro teste para isso foi a bem cuidada interpretação do Uirapuru, de Villa-Lobos, com o seu exuberante uso das sonoridades orquestrais para evocar os ruídos da floresta tropical. É uma peça ainda habitada por influências da escola francesa e, sobretudo, do Stravinski da Sagração (e Minczuk foi muito hábil em deixar tudo isso muito claro). Mas é, ao mesmo tempo, uma obra de tom inequivocamente pessoal na qual, como dizia Mário de Andrade, “a orquestra avança, se arrastando penosamente, quebrando galhos, derrubando árvores, tonalidades e tratados de composição”.Homenagem ao centenário de morte de Edvard Grieg, que se relembra em setembro deste ano, o seu Concerto em lá menor op. 16 recebeu, de Arnaldo Cohen, uma interpretação bastante correta. De um modo geral, foram muito mais persuasivos os momentos de inflexão lírica – a cadência do Allegro molto moderato; os delicados toques de colorido do Adagio, de tom noturno; o lírico episódio cantabile no meio do Allegro moderato e marcato –, mais bem resolvidos do que passagens de bravura como o ritmo marcado de halling, a dança popular norueguesa, do terceiro movimento. Mas foi, no conjunto, uma execução muito satisfatória complementada, no extra, por uma leitura encantadora de um dos meditativos Liebesträume de Liszt.A espetacular transcrição feita por Maurice Ravel, em 1922, dos Quadros de uma Exposição, de Módest Mússorgski, é um resplandecente mostruário das possibilidades da orquestra. Essa é uma peça com a qual Minczuk tem muita familiaridade, e da qual sabe extrair os melhores efeitos. Os diversos climas da Promenade, por exemplo: o brilho da enunciação inicial do tema pelo trompete; a nostalgia da trompa antes do Velho Castelo; a brilhante introdução das Tulherias, e assim por diante. Há episódios que ele sempre realiza com muita graça: a agitação popular do Mercado de Limoges, por exemplo; ou as frases esganiçadas do trompete, imitando a voz de taquara rachada de Schmuyle, o judeuzinho pobre, contraposta ao rico e arrogante Samuel Goldenberg (cordas e madeiras em uníssono).A OSB passou incólume pelos árduos testes de uma partitura que exige muito de todos seus naipes. E chegou com brilho à Grande Porta de Kíev, em que o tema do Passeio é retrabalhado de forma épica e religiosa, para evocar uma visão heróica do passado. Uma coda que arrancou do público reação entusiástica.

a filha do regimento - crítica de lauro machado coelho

Agilidade de concepção, mão leve da direção, tratamento bem-humorado das situações, que arrancam da platéia as risadas mais espontâneas – essas são as qualidades mais marcantes da encenação de La Fille du Régiment, de Gaetano Donizetti, que estreou no sábado no Teatro Municipal.Sem sentir a necessidade de alterar o contexto histórico – a ópera ainda se passa no Tirol dos primeiros anos do século 19, fiquem tranqüilos – o diretor André Heller-Lopes se permitiu uma saudável dose de liberdade, salpicando, aqui e ali, bem encaixadas referências contemporâneas e brincadeiras com as convenções do gênero lírico, que só serviram para aumentar as divertidas reações do público. Apoiado nos bonitos cenários de Renato Theobaldo, bom desenho de luz de Fabio Retti e figurinos muito adequados de Marcelo Marques, o espetáculo que Heller colocou em cena foi colorido, engraçado, beirando deliberadamente o kitsch, às vezes, mas sem resvalar para o mau-gosto, e obtendo do elenco resposta muito desenvolta.Funcionou muito bem, além do uso do português nos diálogos típicos do opéra-comique – solução a que o público já está habituado – a idéia de Jacqueline Laurence, a única francesa do elenco, dizer as suas falas no original. Isso não só caracteriza o esnobismo de sua personagem, a Duquesa de Krankentorp, como acentua a distância que ela, como aristocrata, coloca entre si mesma e o comum dos mortais.Embora o seu papel seja pequeno, a Marquesa de Birkenfeld de Denise de Freitas foi, vocal e cenicamente, a presença mais marcante em cena. Além de cantar de modo impecável, ela se revelou ótima comediante como a mãe verdadeira de Marie, a órfã coletivamente adotada pelo 21º Regimento de Granadeiros. Nos “cacos” inseridos por Heller nos diálogos, Denise esteve muito engraçada, em especial nos momentos em que chama às falas o maestro como, no fundo, todo cantor gostaria de fazer. A sua contrapartida masculina, Douglas Hahn, por muito tempo ausente de nossos palcos, retorna a São Paulo em ótima forma dramática e teatral, fazendo de modo muito divertido o sargento Sulpice, um dos “pais” de Marie.A personagem título exibiu, nas mãos de Rosana Lamosa, uma dose igual de qualidades e problemas. Boa atriz, criando bem a personagem tal como Heller a imagina, dona de timbre privilegiado, Lamosa não exibiu dificuldades na ornamentação exigida pela parte. Mas a voz, pequena, tendeu a ter pouco apoio nos graves, que soaram foscos e, com freqüência, foram encobertos pela orquestra – e isso prejudicou parcialmente a interpretação de sua grande ária do segundo ato. Mas Rosana sabe o que faz e, quando a partitura vem ao encontro de suas melhores virtudes, o resultado é muito bonito. Foi o caso de “Il faut partir”, no final do primeiro ato, cheia de ecos de Grétry e Auber, prova patente de que Donizetti, poucos meses depois de chegar a Paris, já sabe perfeitamente como escrever no estilo francês. Ali, a típica voz de soprano lírico de Lamosa teve o seu melhor momento em todo o espetáculo.Assim sendo, reunidos os dotes histriônicos de Denise, Douglas e Rosana, a cena mais hilariante – ponto culminante da comédia – foi a da lição de canto, no segundo ato, em que a marquesa tenta em vão ensinar à sua filha redescoberta uma tediosa romança de salão, que vai sendo aos poucos vencida pelo ritmo contagiante do “Rataplan”, que lhe lembra as alegrias simples de quando ela era a vivandeira do 21º Regimento.O desempenho mais difícil de equacionar é o de Flávio Leite (Tonio). Ele não é mau ator, realiza com facilidade as intenções do diretor, é um cantor afinado, com extensão bastante satisfatória, que alcança normalmente as notas muito agudas de sua tessitura – mas o faz de modo irreparavelmente feio, pois o timbre, infelizmente, é ingrato: às vezes demasiado anasalado, às vezes francamente caprino, com legato imperfeito. Pode-se imaginar facilmente Flávio Leite num papel característico como o do Basílio das Bodas de Fígaro. Mas não se sabe prever o futuro da carreira de um tenor ligeiro ao qual faltam as qualidades essenciais do belcanto e que – apesar de sua coragem em enfrentar um papel como o de Tonio, no qual investiu bastante energia – parece inadequado para o tipo do galã, um Nemorino, um Ernesto, um Almaviva. Inteligentemente, André Heller percebeu as limitações do cantor, e deu a seu personagem uma inflexão caricatural que, principalmente na temível “Ô mes amis, quel jour de fête”, fez a seqüência de nove dós soar engraçada e obteve, junto à platéia, resultado aceitável.Feitas as contas, essa Fille du Régiment convence pelo resultado de conjunto de um desempenho homogêneo dos figurantes e do Coral Lírico, pela condução correta do maestro José Maria Florêncio, a que a Sinfônica Municipal responde bem; mas, sobretudo, pela vivacidade de uma encenação esfuziante, principal motivo para que valha a pena ir ao teatro, nestes próximos dias, assistir a esta comédia de Donizetti, que não era montada em São Paulo desde 1894.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

josé serra e a música, por joão batista natali

O governador José Serra não é um homem inculto. Economista com boa carreira acadêmica, tem ainda grande experiência na gestão de políticas públicas. Mas a música erudita não está entre seus campos de interesse. Talvez apenas por isso ele corra o risco de, já no início do governo, colocar no currículo o título duvidoso de coveiro da Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado. É essencialmente essa a dimensão do processo de fritura do diretor artístico John Neschling, que se confunde com um dos únicos projetos coletivos da cultura brasileira a se tornar uma ilha de excelência de reconhecimento mundial. O maestro tem a reputação de estrela idiossincrática, de egocentrismo mal-humorado, de excessivamente caro. O que importa, no entanto, é o produto de um trabalho que deu aos brasileiros uma auto-estima elevadíssima em termos de produção de música sinfônica. Neschling tem com a Osesp uma relação osmótica. Não há como demiti-lo sem que se expatrie parte dos músicos estrangeiros que ele trouxe, sem que se abandone a ousadia do repertório ou se engavete a projeção externa do Brasil por suas turnês e gravações. E, sobretudo, sem que vá a pique a rotina de elevada cultura para os milhares que freqüentam os três concertos semanais da Sala São Paulo.
Há para o governador um outro ponto potencial de desonra. É o de acabar com o Teatro São Pedro ou transformar sua recente vocação de espaço experimental para óperas. Foram dez produções no ano passado -duas a mais que no Teatro Municipal. O teatro está sendo cobiçado pelo olho gordo de produtores que gravitam em torno do tucanato. "Bravo, bravíssimo", como diria ironicamente um personagem de "Don Giovanni", ópera picaresca de Mozart. Serra estaria apenas seguindo o mau exemplo do prefeito Gilberto Kassab, que permitiu o recente desmantelamento do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo. Se seus músicos erraram, que sejam punidos por multas ou suspensão. Afastá-los e abrir concurso para substituí-los não assegura a manutenção do mesmo padrão. Um conjunto de câmara apenas vai adiante com afinidades estéticas que permitam mergulhar no repertório com uma aguda simetria nos planos técnico e musical. A Osesp, o São Pedro e o quarteto podem caminhar para a vala comum das grandes frustrações brasileiras no campo da música erudita, que não sobrevive em nenhum canto do mundo sem o amplo apoio de governantes -mesmo nos Estados Unidos, onde o Estado entra no jogo por meio da renúncia fiscal. O resto é birra, é pirraça, é estreiteza de visão. Atributos que o governador certamente não quer ter acoplados a sua imagem.