A simplicidade desadornada da escrita de Schubert exige do executante o que há de mais difícil: uma técnica excepcional posta a serviço não da exibição de virtuosismo, mas de fazer música. Foi o que demonstrou Yo-Yo Ma com a interpretação da Sonata em lá menor D. 821, originalmente concebida para uma espécie de guitarra-violoncelo, hoje obsoleta, que tinha o nome de arpeggione. O sabor popular, descontraído da peça foi perfeitamente traduzido pelo solista e sua acompanhadora, Kathryn Stott, cujo piano mostrou-se perfeitamente à altura do nível de Yo-Yo Ma, tanto no Allegro moderato quanto no Allegretto em forma de rondó, cujos episódios exploram todas as possibilidades do instrumento. Mas foi sobretudo na canção sem palavras do Adagio que a espontaneidade do legato mostrou o violoncelista plenamente capaz de explorar toda a pudica poesia de Schubert.
O momento mais espetacular do recital veio em seguida, com a Sonata em ré menor op. 40, uma das peças mais pessoais de Dmitri Shostakóvitch, fruto de um momento de crise pessoal, no final de 1934, nas suas relações com Nina, a sua mulher. E isso transparece na pulsação dos estados de espírito contrastantes, que se sucedem no Allegro ma non troppo inicial; e sobretudo no lirismo atormentado do Largo, no qual a técnica de pianíssimo de Yo-Yo Ma obteve efeitos de impressionante expressividade.
Contrastando com o clima emotivo desses movimentos, o Shostakóvitch irônico, provocador, explode nos ritmos angulosos, dançantes, do Allegro, que evoca a exuberância contemporânea do balé A Idade de Ouro. E chega a um clímax sarcástico no rondó do Allegro final, que põe à prova não só o solista: é diabólica a parte do piano, que Shostakóvitch, pianista excepcional, escreveu para si próprio – ele estreou a peça em 25 de dezembro de 1934, juntamente com Víktor Kubátski, a quem ela foi dedicada. Aqui, Kathryn Stott e Yo-Yo Ma uniram-se num grande momento de integração e equilíbrio na realização camerística.
Depois da intensidade desse Shostakóvitch, em que pese a excelência de sua execução, Le Grand Tango de Astor Piazzolla perdeu muito, parecendo demasiado longo e soando como um anticlímax. Fosse ele colocado na segunda parte, junto com o bonito arranjo de Bodas de Prata e Quatro Cantos, de Egberto Gismonti, e a força da partitura de Shostakóvitch, ponto mais alto da noite, o teria feito empalidecer menos.
Originalmente escrita para o violino, a Sonata em lá maior de César Franck, monumento da música de câmara romântica francesa, não tem, no violoncelo, o mesmo rendimento, sobretudo nas texturas mais agudas da escrita. Mas Yo-Yo Ma fez dela uma leitura absolutamente convincente, de uma melancolia outonal na declamação muito livre do Recitativo fantasia: ben moderato, de extrema ousadia formal. Mas, sobretudo, Stott e ele conferiram contornos muito enérgicos aos dois primeiros movimentos – em especial à inquietação apaixonada do segundo, Allegro, de ritmo ofegante – e, no Allegro poco mosso final, fizeram contrastar a elegância do refrão “dolce cantabile” com o brilho da coda. Depois disso, os três extras, culminando num Gershwin muito descontraído, foram a forma simpática de responder à reação efusiva da platéia.
sábado, 23 de junho de 2007
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