domingo, 17 de junho de 2007

yo-yo ma, por joão marcos coelho

O violoncelista Yo-Yo Ma é uma das mais reluzentes superstars da música no planeta. Aos 51 anos, é o centro das atrações onde quer que vá: seus concertos têm lotação esgotada com muita antecedência em qualquer teatro do planeta. Não foi diferente aqui; faz tempo que não há mais ingressos para os dois concertos no Teatro de Cultura Artística nesta terça e quarta-feira. Em todas as latitudes, suas apresentações invariavelmente são consideradas “os concertos do ano”. Aqui também não está sendo diferente.
A listagem dos motivos que o levaram ao topo pode soar enfadonha de tão extensa. De fato, seus quinze grammies e mais de cinquenta gravações de praticamente todo o repertório solo, camerístico e concertante para o instrumento fazem deste cidadão do mundo – nascido em Paris de pais chineses, crescido e educado nos Estados Unidos, afilhado do violinista Isaac Stern – o legítimo herdeiro do russo Mstislav Rostropovich no posto de maior violoncelista vivo.
Primeiro aniversário do 11 de setembro em Nova York? Lá estava ele, tocando nos escombros do WTC; forma ao lado de Ronaldo fenômeno como um dos embaixadores da Paz da ONU; e até o folclórico Cosmo Kramer do seriado Seinfeld o citou algumas vezes. Participou, como o trompetista Wynton Marsalis, de desenhos animados (em seu caso, no delicado e inteligente desenho canadense “Arthur”).
A Verdade artística de cada um
Yo-Yo Ma é nota 10 em tudo, mas sobretudo nos seguintes quesitos: técnica diabólica; sensibilidade extraordinária; afinação de assombrar; volume e timbre inigualáveis. Tudo isso sem falar no vibrato, a assinatura pessoal de todo violoncelista. Vamos mais fundo nesta questão do vibrato para clarear as coisas. “O vibrato requer que o violoncelista domine primeiro a capacidade de tocar perfeitamente afinado. Se um jovem violoncelista não possui este domínio, a nota, a cada vez que vibra, soará ácida, acentuando a imprecisão do tom e desviando seus sons harmônicos; o tom exato é nossa versão da verdade artística. A liberdade de vibrar depende desta disciplina, enquanto a expressão puramente impulsiva produz apenas desordem – um exemplo de sabedoria popular que se aplica tanto à mão quanto ao coração”. A citação é de um inesperado ex-colega de Yo-Yo Ma, o sociólogo norte-americano Richard Sennett, num maravilhoso livro intitulado “Respeito” (Record, 2004), que combina autobiografia e ensaio. Sennett foi violoncelista até os 21 anos; tocou com pianistas como Murray Perahia e Richard Goode; abandonou o instrumento por causa de problemas neurológicos em uma das mãos.
Está, portanto, a cavalo para avaliar o talento. “Quando amigos como os pianistas Perahia ou Goode tocavam, eu ouvia algo além de minha apreensão da música; eles faziam pausas e outros aspectos do fraseado, bem como revelavam vozes harmônicas inesperadas, coisa que eu nunca faria. O domínio da técnica musical nos ensina as dimensões objetivas do que se ouve, e na época aceitei que não possuía esta arte. Embora tenha moderado minha vaidade, ter conhecido meus limites não destruiu meu amor pela música – e acho que isto vale para muitas outras pessoas que desenvolvem um amor genuíno pela perícia.”
Amizade e respeito
Mas não basta ser músico de gênio para ser reconhecido e obter “respeito” em termos amplos. Talvez seja uma questão de cabeça. Há músicos que se conformam em repetir durante décadas o mesmo repertório. Como diz Alejo Carpentier, “o virtuose, orgulhoso do seu virtuosismo, termina por querer demonstrar que é mais virtuose do que todos os virtuoses”.
Yo-Yo – amizade, amizade, em chinês – jamais quis prender-se nesta gaiola, ainda que dourada e cheia de cifrões. "Se você fica entediado”, disse ele numa entrevista, “então é porque você se colocou dentro de certos limites e chafurda neles o tempo todo”. Depois de fazer todo o circuito das grandes salas de concerto, das maiores orquestras e maestros do planeta – e de gravar todo o repertório de violoncelo --, ele viu diante de si um futuro de eterna repetição do mesmo. Corria a temporada 1996/7. E Ma, que já tinha no DNA a fusão dos estilos musicais (por ironia ou sintoma, tema da tese de seu pai musicólogo), partiu com tudo para conhecer melhor suas raízes e... a China (sim, ele nada tem a ver com o rolo compressor chinês que nos assola nos primeiros anos do século 21. China para ele era só um país gigantesco no mapa-múndi).
Nada melhor do que as suítes de Bach, o Himalaia de todo violoncelista, para a largada. Ele já as tinha gravado em 1982 (o álbum duplo, por sinal, acaba de ser relançado no Brasil pela Sony). E quando lhe disseram para regravá-las, ele fez o inesperado. Entre as alternativas a) resignar-se a repetir-se; e b) recusar-se e comprar briga com as então poderosas gravadoras – Ma optou por um gigantesco projeto que se transformou numa das obras-primas de sua vida criativa e que melhor o definem: uma série de seis filmes de uma hora de duração cada, inspirados nas suítes de Bach.
Naquele momento, chutou definitivamente o pau da barraca dos bem-comportados. Juntou-se ao reduzido grupo de grandes músicos que no último século tiveram a coragem de dizer não, afirmar sua liberdade, correr riscos, entregar-se à experimentação – viver, enfim, e não “chafurdar” burocraticamente em gaiolas douradas. Flash rápido sobre o Projeto Bach: em “O Jardim Musical”, Ma e a paisagista Julie Moir Messervy “viajam” entre Boston e Toronto tentando criar um jardim inspirado na suíte no. 1; em “O Som dos Cárceres”, calcado na suíte no. 2, recursos de tecnologia virtual colocam Ma tocando num dos cárceres imaginados pelo arquiteto italiano Giambattista Piranesi, contemporâneo de Bach (direção de François Girard, que faria em seguida “32 curtas sobre Glenn Gould”); na suíte no. 3, Ma viaja com o coreógrafo Mark Morris na criação de uma notável coreografia (“Rolando escada abaixo”); na quarta, o diretor Atom Egoyan instaura tramas cruzadas no que chama “Sarabanda”; o ator de kabuki Tamasaburo Bando dança a quinta suíte “Lutando por Esperança”); e o casal premiado de patinação no gelo J. Torvill e D. Dean dança a sexta suíte (“Seis Gestos”).
As maravilhas da
Internet da Antiguidade
Foi uma espécie de alforria. Naquele ano-chave de 1997, Ma também deu o pontapé inicial em seu originalíssimo Silk Road Project, ou Projeto da Rota da Seda. Ou, como gosta de chamar, “a Internet da Antiguidade”. Uma via de duas mãos: rotas de comércio a partir do Oceano Pacífico e através do Oriente Médio e o Mar Mediterrâneo foram fundo no coração da Ásia, levando e trazendo tecnologia, arte, cultura e idéias num longo período histórico. Silk Road, portanto, não é só um CD. Cabe nas seguintes qualificações: cooperativa de músicos, pesquisa de música nova, grupo de gravação e turnês, organização educacional. O balanço de uma década aponta centenas de apresentações e eventos educacionais ao redor do mundo, três CDs e 24 obras encomendadas a compositores de países como Azerbaijão, China, Irã, Mongólia, Turquia e Usbequistão. Ano passado foi lançado o Silk Road Chicago, uma verdadeira “ocupação” da cidade por meio de apresentações e workshops nas escolas e espaços culturais – mais de 70 no último ano.
Filosofia: executar, encomendar novas obras e divulgar a imensa variedade musical das culturas da Rota da Seda. Ou seja, Ma propõe um diálogo entre culturas por meio da música. O pressuposto é que não existe cultura pura no mundo. Ele adora dar o exemplo do tango: suas origens estão nas células rítmicas tocadas por escravos africanos na Argentina; seu instrumento principal, o bandoneón, foi inventado na Alemanha e levado para a América do Sul pelos músicos italianos emigrados.
“A música”, escreve o musicólogo inglês Nicholas Cook em “Music: a very short introduction” (Oxford, 2004) “é um modo não só de obter uma compreensão do outro cultural, mas também de modificar nossa própria posição, construindo e reconstruindo nossa própria identidade durante o processo.” É isso que fascina Yo-Yo Ma. Cook é bom porque também explica o divórcio do circuito da música clássica junto a públicos mais amplos: “ É evidente que o mundo está repleto de diferentes tipos de música; porém, os modos pelos quais pensamos a música não refletem esta situação. Cada tipo de música chega com seu próprio modo de pensar como se fosse o único (e a única música sobre a qual pensar)”. Ele parafraseia Bernard Shaw no maravilhoso aforismo de que “a Grã-Bretanha e os EUA estão separados pela mesma língua” para concluir: “A música pode criar a milagrosa impressão de ir diretamente, como escreveu Beethoven no manuscrito de sua Missa Solemnis, ‘do coração... ao coração’. Mas o milagre de uma pessoa é a ilusão da outra (...) ou seja, está claro que a música pode estabelecer um ponto de contato entre culturas. Mas não pode abolir de imediato a diferença cultural. Ela pode ser encarada como uma ferramenta privilegiada para nos conscientizarmos da diferença cultural; afinal, é sobre um fundo de semelhanças que melhor sobressaem as diferenças. Por isso, em termos musicais, a frase de Shaw pode aplicar-se ao mundo inteiro”.
Dar o primeiro passo em relação ao outro, como faz Yo-Yo Ma, é admitir-se vulnerável. Isso vale para o intérprete, o compositor e o ouvinte. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer fala em “fusão de horizontes” entre eles. Praticar a música de um jeito parecido com o que nós (pobres mortais ouvintes) a ouvimos é realizar uma missão fundamental para o século 21: fazer a inclusão da música na realidade das pessoas, de grupos sociais, da população, enfim.
A magia do improviso sobre as regras
O desafio do intérprete, diz outro filósofo, desta vez o norte-americano Bruce Ellis Benson (em “The improvisation of musical dialogue”, Cambridge, 2004), “é falar em nome dos outros – o compositor, intérpretes do passado e toda a tradição na qual vivemos – e também em seu próprio nome, assim como para aqueles que ouvem. A situação ideal – que provavelmente jamais será atingida – é permitir que a voz do outro fale, sem deixar-se submergir por ela”.
Benson vai mais longe. Diz que intérpretes como Yo-Yo Ma praticam o que o filósofo Kant dizia para o grande compositor fazer: improvisar sobre as regras que determinam a prática musical. É por isso que em seus dois concertos em São Paulo, Ma começa tradicional, com a célebre sonata Arpeggione de Schubert; vem para o século 20 com a belíssima sonata de Shostakovich; começa a tirar a casaca e rompe o clima erudito com o genial porteño Piazzolla e seu Grand Tango; põe uma havaiana para avançar pela villalobiana brasilidade de Egberto Gismonti. E quando tudo parecia como dantes no quartel de Abrantes ele volta para o século 19, larga as havaianas, retoma a casaca e interpreta a versão para violoncelo da célebre sonata de César Franck original para violino.
Não o acusem de pós-modernismo, por favor. Pela diversificação e os saltos tanto históricos quanto de gêneros, o recital de Yo-Yo Ma parece restituir uma prática do século 18, quando se misturava absolutamente de tudo numa apresentação pública – de uma ária de ópera a um movimento de sinfonia, de um quarteto de cordas a um divertimento para cordas. Tanto lá, nos idos do século 18, como hoje, no século 21, o objetivo é o mesmo: não construir uma apresentação orgânica. Aqui, não importa quanto é 2 + 2. É mais interessante e curtido passear pela música. Sem adjetivos. Sem amarras. Sem camisas-de-força. Provocando surpresas. A propósito, sabem como é o título do novo CD de Yo-Yo Ma, cujo conteúdo ninguém sabe até agora, e que será lançado em 31 de julho próximo? “New Impossibilities”.
Em “Respeito”, Richard Sennett comenta de modo inovador a relação cantor-pianista. Ele fala do barítono Dietrich Fischer-Dieskau e do pianista Gerald Moore, mas as palavras aplicam-se à perfeição à nossa dupla Yo-Yo Ma e Kathryn Stott: “No palco o cantor trata o pianista como seu igual. Nos bastidores, a prática de status, prestígio e honra social não predispõem à igualdade; o respeito próprio do artífice é indiferente a isso. Podemos lidar com estes limites tentando tornar a sociedade mais semelhante ao concerto; isto é, explorando as formas de se apresentar como iguais; e demonstrar respeito mútuo. Contudo, o exemplo musical deixa claro como isto seria difícil. Parte do que faz de ambos os homens intérpretes raros é que eles alcançaram a mutualidade; muitos músicos têm o impulso cooperativo, mas poucos conseguem traduzi-lo em som”.

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