sábado, 30 de junho de 2007

antologia pessoal - edelton gloeden

Que peça você mais ouve? Que peça ficou melhor com o tempo?
Depende do momento. Sou um ouvinte compulsivo. No dia-a-dia, e quando há registros, procuro concentrar-me na audição dos compositores que estou estudando e nas suas obras para outros instrumentos e formações. Para nós violonistas isto é imprescindível, pois o repertório para o instrumento é, em sua maior parte, de autores pouco conhecidos do grande público. Além de obras para violão, ouço desde música medieval até os autores contemporâneos. Citar uma só obra que ficou melhor com o tempo? Seria muito mais fácil fazer uma lista de dez páginas. Não tendo esta opção, cito agora o Quarteto de cordas em la menor, Op. 132 de Beethoven.

Dê exemplo de um bom compositor injustiçado.
Vários dos grandes compositores foram injustiçados em seu tempo: J.S.Bach, Mozart, e poderíamos apontar os casos de Prokofiev e Shostakovich, perseguidos pelo regime soviético, o e Hindemith, desprezado pelas avant-gardes do pós-guerra, e o de Schoenberg, sempre muito polemizado e ainda pouco executado. Cite uma peça que frustrou suas melhores expectativas. Invocação em Defesa da Pátria de Heitor Villa-Lobos.

E um compositor surpreendente, ou seja, bom e pelo qual você não dava nada.
Carlos Gomes

Música para cinema é um gênero menor?
Não, não é. Duas obras estupendas: Alexander Nevsky de Sergei Prokofiev para o filme de Eisenstein, e O Descobrimento do Brasil de Villa-Lobos, para o filme de Humberto Mauro.

Cite uma obra chata, mas boa.
Acredito que opinar sobre gosto pessoal pode ser uma contradição, pois aquilo que achamos “chato” hoje eventualmente poderemos apreciar no futuro, e o contrário também pode acontecer. Para mim, Carmina Burana de Carl Orff é um bom exemplo de uma música bem construída, com texto exuberante, que me causou uma forte impressão inicial, mas que a cada audição o interesse diminui.

Um compositor que você acha muito bom, mas nunca ouviu.
Só posso responder que há sempre muito o que ouvir.

Uma obra difícil, mas indispensável.
Spem in Alium, o moteto a 40 vozes de Thomas Tallis.

De que ópera você mudaria o final? Por quê?
O Don Carlo de Verdi. Porque o desfecho é totalmente forçado, acontecendo justamente no ponto crucial do enredo.

A música contemporânea é muito criticada. Que peça (s) estreada (s) nos últimos dez anos mereceria, para você, um lugar na história da música?
Se a pergunta fosse para definir o que é a música contemporânea hoje, eu não saberia responder, principalmente na medida em que os quartetos de cordas de Leos Janácek, por exemplo, concluídos em 1928, soam para mim muito mais instigantes e atuais do que as obras de Philip Glass. Nos últimos dez anos, tenho me concentrado mais no passado recente, e aprendendo muito ouvindo obras como a Iberia de Albéniz, os Nocturnes de Fauré, a obra para órgão de Messiaen, o Requiem de Hans Werner Henze, a Lachrimae de Benjamin Britten, o Maracatú de Chico Rei de Mignone, enfim, música de alta qualidade.

De que compositor brasileiro, de qualquer tempo, você recomendaria a audição?
Heitor Villa-Lobos.

Que obras (brasileiras ou estrangeiras) sempre presentes nos cânones não mereceriam seu voto?
As duas mencionadas acima, Carmina Burana e Invocação em Defesa da Pátria.

E uma sempre ausente em que você votaria?
A música de câmara de Henrique Oswald.

Música sinfônica ou ópera?
Ambas.

Verdi ou Wagner?
Ambos. Verdi e seus personagens humanos e Wagner com a mitologia.

Tchaikovsky ou Schoenberg?
Ambos. Cada um em seu tempo e espaço, tendo em comum o domínio pleno da técnica.

Callas ou Tebaldi?
Ambas. Em seus melhores momentos, Callas corre todos os riscos em favor da emoção, e Tebaldi com a beleza da linha vocal e o pleno domínio técnico.

Plácido Domingo ou Pavarotti?
Em ópera, nos papéis adequados, ambos.

Glenn Gould ou Maurizio Pollini?
Ambos. Glenn Gould, excêntrico e contestador da tradição e dos rituais da carreira, uma figura única, e Pollini como representante da tradição levada adiante com suas leituras precisas, apresentando e explorando repertórios inusitados. Neste último ítem, um ponto em comum: repertórios que não fazem parte dos holofotes da oficialidade. Gould, por exemplo, revelando os virginalistas ingleses, os compositores canadenses, as obras de Hindemith e Krenek, e Pollini com as obras de Boulez, Nono, Stockhausen e Manzoni.

Herbert Von Karajan ou Pierre Boulez?
Ambos. Logicamente, cada um dentro de seu universo específico.

Que virtude mais preza na boa música?
O equilíbrio entre razão e imaginação.

E quais os defeitos que obrigatoriamente devem estar ausentes em uma grande peça?
Se possível, todos.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

a italiana em argel, por lauro machado coelho

A gesticulação estilizada, o uso de elementos coreográficos associados ao desempenho dos atores, a exploração de gags que partem de situações oferecidas pelo texto conjugaram-se para tornar muita viva e divertida a concepção cênica que Hugo Possolo ofereceu de A Italiana em Argel, a ópera cômica de Gioachino Rossini que estreou sábado no Teatro Municipal.
Há momentos, sem dúvida alguma, em que o abuso de ingredientes histriônicos rema contra a maré, pois eles distraem a atenção do público daquilo que deve ser o centro do espetáculo: a interpretação dos cantores. E há um ou outro traço dispensável – fazer dos eunucos do serralho um bando de drag-queens, por exemplo – por ser de gosto discutível.
Mas isso não chega a alterar a fluência e o potencial de comunicabilidade dessa Italiana in Algeri, um espetáculo muito bem dirigido, que se apóia nos coloridos cenários de Luís Frúgoli – a que não falta a alusão moderna: o elefante coroado por uma torre de petróleo, referência a um lado perverso das relações do Ocidente com o Oriente – e nos bonitos figurinos de Cássio Brasil, com bons achados: a silhueta caricatural do bey Mustafá; as transformações na indumentária de Taddeo, quando ele vai receber o título de “Kaimakan”; ou de Isabella, quando ela se paramenta para receber o bey. No conjunto, é uma montagem que respeita a natureza específica da ópera buffa, e funciona pela vivacidade rítmica e o bem integrado desempenho de seu elenco.
Físico do papel e adequação vocal se conjugaram para que a Isabella de Luisa Francesconi fosse elegante e feminina mas, ao mesmo tempo, com a dose certa de malícia e determinação, para manipular tanto o bey quanto Taddeo, seu azarado pretendente. Talvez fosse necessário um pouco mais de energia no rondó “Pensa alla patria”, do segundo ato (embora isso se deva, talvez, mais à opção da regência); mas a mistura de melodia lânguida e coloratura vertiginosa de “Cruda sorte... Già so per pratica”, a ária di sortita da personagem, demonstra que Francesconi terá, no decorrer da temporada, condições de fazer da protagonista uma composição bem trabalhada.
Boa surpresa foi o timbre delicado de André Vidal. De voz pequena mas de ótimo polimento, ele é um típico tenore di grazia, muito à vontade no repertório belcantístico, pela leveza e a facilidade demonstrada na ornamentação. Foi muito satisfatório o seu rendimento tanto nas árias – em especial “Languir per una bella... Contento quest’alma”, do primeiro ato – quanto nas cenas de conjunto. Outro tanto se pode dizer de Denise Tavares embora, em determinados momentos, pareça faltar à sua Elvira um pouco mais de presença vocal.
Os extremos graves da tessitura e as exigências de agilidade no silabato apresentam, para Stephen Bronk, dificuldades que não podem ser ignoradas; mas que ele supera com a opulência de um registro de belos colorido, e com um talento cênico que, para quem está acostumado a vê-lo em papéis sérios, demonstra-se agora ser igualmente desenvolto em partes cômicas. O preciso equilíbrio na corda bamba da caricatura fez de seu Mustafá – e com toda justiça – o merecedor da salva de aplausos mais estrondosa, nos cumprimentos finais.
Para quem, no sábado, estava visivelmente indisposto, foi apreciável o desempenho de Douglas Hahn como Taddeo. Apesar de problemas evidentes no primeiro ato – no final do dueto “Ai capricci della sorte”, por exemplo – sua participação, no segundo, foi bem mais equilibrada; e tudo indica que, nas demais récitas, ele poderá mostrar, da personagem, a sua melhor face. Tanto Edinéia de Oliveira (Zulma) quanto José Galisa (Haly) investiram, em suas personagens de apoio, a costumeira classe e experiência.
A preferência de Jamil Maluf por andamentos mais pausados, embora isso contrarie às vezes a exuberância característica da música de Rossini, talvez se explique pela preocupação em oferecer aos cantores condições mais confortáveis de articulação e emissão, sobretudo nas elaboradas cenas de conjunto. Mas, na realidade, a opção pelo pianissimo nas passagens intermediárias do septeto “Confusi e stupidi” fez esse hilariante finale do primeiro ato perder um pouco de seu brilho. Ainda assim, à frente da Experimental de Repertório que, à exceção de alguns desacertos nos metais – o solo de trompa na entrada de “Languir per una bella”, por exemplo – teve um bom desempenho, Maluf foi capaz de garantir ao espetáculo um ritmo estável.

domingo, 24 de junho de 2007

brasília - temporada 2007

1. March 13
Wagner: Die Meistersinger overture
Villa-Lobos: Uirapuru
Mahler: Symphony # 1
2. March 20
Dvorak: Carnival overture opus 92
Haydn: Symphony # 104
Ravel: Piano Concerto for the left hand (Joel Bello Soares)
Stravinsky: Firebird suite (1919)
3. March 27
Mozart: Piano Concerto # 25 K. 503 (Ira Levin)
Berlioz: Symphonie Fantastique opus 14
4. April 1
Wagner: Die Meistersinger overture
Hindemith: Trauermusik
Bruch: Kol Nidrei
Berlioz: Symphonie Fantastique opus 14
5. April 10
Guarnieri: Three Dances: Brazilian Dance / Negro Dance / Savage Dance
Guarnieri: Choros for cello (del Claro)
Schubert: Symphony # 9 “Great” D. 944
6. April 17
(regente: Erich Lehninger)
Grieg: Holberg suite opus 40
G. Bauer: Cadencias para piano e orquestra (Midori Maeshiro)
Sibelius: Rakastava opus 14
Haydn: Symphony # 85 “la Reine”
7. May 1 worker’s day
(regente: Mateus Araujo)
Gomes: Guarany overture
Guarnieri-Paulinyi: Ponteios
Morais: Brasilia
Nepomucemo: Serie Brasileira
Waldemar Henrique arr. Mignone: Boi Bumba
Araujo: Semana do Presidente
8. May 8
(regente: Alex Klein)
Guarnieri: Symphony # 6
Mozart: Oboe Concerto (Alex Klein)
Mendelssohn: Symphony # 5 opus 105 “Reformation”
9. May 15
(regente: Roberto Tibirica)
Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras # 9
Mozart: Horn Concerto # 2 K. 417 (Stan OSTNCS)
Dvorak: Symphony # 8 opus 88
10. May 22
(regente: Elena Herrera)
Turina: Procession
Chavez: Sinfonia India
De Falla: Three-Cornered Hat
Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras # 8
11. May 29
Prado: Variations for orchestra
Tchaikovsky: Violin Concerto opus 35 (Fanny Clamagirand)
Elgar: Enigma Variations opus 36
12. June 5
Mozart: Symphony # 41 „Jupiter“
Mahler: Kindertotenlieder (Denise de Freitas)
R. Strauss: Tod und Verklaerung opus 24
13. June 12
Prokofiev: Violin Concerto # 2 (Daniel Guedes)
Shostakovich: Symphony # 10
14. June 19
Haydn: Symphony # 82 “Urso”
Francaix: Divertissement for bassoon and string orchestra (Harry Schweizer)
Tchaikovsky: Symphony # 4 opus 36
15. June 26
Mendelssohn: Hebrides overture
Elgar: Cello Concerto opus 85 (Antonio Meneses)
Brahms: Symphony # 1 opus 68
16. July 3 concert for Portugal’s presidency of the EU
Braga Santos: overture
Prokofiev: Violin Concerto # 1 opus 19 (Claudio Cruz)
Brahms: Symphony # 1 opus 68
17. July 10
Berlioz: Hungarian March from “Damnation de Faust”
Rosza: Double Concerto for violin and cello (Pablo de Leon, Raiff Dantas)
Nielsen: Symphony # 4 opus 29 “Inextinguishable”
18. July 19 (Campos de Jordao)
Haydn: Symphony # 82 “Urso”
Hummel: Trumpet Concerto (Alison Balsom)
Guarnieri: Negro Dance (Danca Negra)
Nielsen: Symphony # 4 opus 29
June 29 Ballet Fesitval (Gisele Santoro)
Tchaikovsky: The Nutcracker act 2
19. August 7
Rachmaninoff: Piano Concerto # 1 opus 1 (Jean Louis Steuermann)
Bruckner: Symphony # 4
10. August 14
(regente: Roberto Duarte)
Peixe: Museu da Inconfidencia
Assad-Piazolla: Verno Porteno
Assad: Concerto fro two guitars (Assad brothers)
Santoro: Symphony # 11
21. August 28
(regente: Alastair Willis)
R. Strauss: Serenade for Winds opus 7
Vaughan-Williams: A Lark Ascending (Haratoun Bedelian)
Elgar: Introduction and Allegro opus 47 (guest quartet, Bedelian, David Chew and friends)
Schumann: Symphony # 3 opus 97 “Rhenish”
22. September 4
Beethoven: Coriolan overture opus 60
Beethoven: Piano Concerto # 4 opus 56 (Maria Joao Pires)
Sibelius: Symphony # 1 opus 39
23. September 11
(regente: Sidney Harth)
Ravel: ma mere l’oye
Liszt: Piano Concerto # 2 (Gilberto Tinetti)
Beethoven: Symphony # 7
24. September 18
Villa-Lobos: Choros # 10 (?)
Jobim: Sinfonia Alvorada
Milton Nascimento
25. September 25
Shostakovich: Violin Concerto # 1 opus 99 (Nicolas Koeckert)
Martinu: Symphony # 1
26. October 2
(regente: Luis Gustavo Petri)
Braga: Episodio Sinfonico
Saint-Saens: Piano Concerto # 5 opus 103 “Egyptian” (Ana Claudia Brito)
Chausson: Symphony in Bb opus 20
27. October 9
Brahms: Piano Concerto # 2 opus 83 (Nelson Freire)
Sibelius: Symphony # 5 opus 82
28. October 23, 24 “ Faust in Music” lancamento
Wagner: A Faust Overture
Liszt: A Faust Symphony (Howard Haskin and male chorus )
29: October 30, 31
Wagner gala (Howard Haskin, Graciela Araya, Eiko Senda)
Parsifal: Act 1/ Prelude
Act 2 / Prelude and Kundry/Parsifal duet
Die Walkuere / act 1 scene 3 Sieglinde/Siegmund
30. November 13
(regente: John Neschling)
Barber: Adagio for Strings opus 11
Mignone: Festa nas Igrejas
Tchaikovsky: Symphony # 1 “Winter Dreams” opus 13
32: November 21
Brasilia Film Festival concert
33. December 4
Bizet: Symphony in C
Britten: Les Illuminations opus 18 (Daniella Carvalho)
Schmitt: Le Tragedie de Salome opus 50 (Daniella Carvalho)
34. December 11 & 12
Bach: Cantata # 82 “Ich habe genug” (Leonardo Nevia)
Mahler: Symphony # 5
+ Concerts in Satellite cities, Chamber music series
Concerts conducted by Ira Levin unless otherwise indicated

sábado, 23 de junho de 2007

yo-yo ma, por lauro machado coelho

A simplicidade desadornada da escrita de Schubert exige do executante o que há de mais difícil: uma técnica excepcional posta a serviço não da exibição de virtuosismo, mas de fazer música. Foi o que demonstrou Yo-Yo Ma com a interpretação da Sonata em lá menor D. 821, originalmente concebida para uma espécie de guitarra-violoncelo, hoje obsoleta, que tinha o nome de arpeggione. O sabor popular, descontraído da peça foi perfeitamente traduzido pelo solista e sua acompanhadora, Kathryn Stott, cujo piano mostrou-se perfeitamente à altura do nível de Yo-Yo Ma, tanto no Allegro moderato quanto no Allegretto em forma de rondó, cujos episódios exploram todas as possibilidades do instrumento. Mas foi sobretudo na canção sem palavras do Adagio que a espontaneidade do legato mostrou o violoncelista plenamente capaz de explorar toda a pudica poesia de Schubert.
O momento mais espetacular do recital veio em seguida, com a Sonata em ré menor op. 40, uma das peças mais pessoais de Dmitri Shostakóvitch, fruto de um momento de crise pessoal, no final de 1934, nas suas relações com Nina, a sua mulher. E isso transparece na pulsação dos estados de espírito contrastantes, que se sucedem no Allegro ma non troppo inicial; e sobretudo no lirismo atormentado do Largo, no qual a técnica de pianíssimo de Yo-Yo Ma obteve efeitos de impressionante expressividade.
Contrastando com o clima emotivo desses movimentos, o Shostakóvitch irônico, provocador, explode nos ritmos angulosos, dançantes, do Allegro, que evoca a exuberância contemporânea do balé A Idade de Ouro. E chega a um clímax sarcástico no rondó do Allegro final, que põe à prova não só o solista: é diabólica a parte do piano, que Shostakóvitch, pianista excepcional, escreveu para si próprio – ele estreou a peça em 25 de dezembro de 1934, juntamente com Víktor Kubátski, a quem ela foi dedicada. Aqui, Kathryn Stott e Yo-Yo Ma uniram-se num grande momento de integração e equilíbrio na realização camerística.
Depois da intensidade desse Shostakóvitch, em que pese a excelência de sua execução, Le Grand Tango de Astor Piazzolla perdeu muito, parecendo demasiado longo e soando como um anticlímax. Fosse ele colocado na segunda parte, junto com o bonito arranjo de Bodas de Prata e Quatro Cantos, de Egberto Gismonti, e a força da partitura de Shostakóvitch, ponto mais alto da noite, o teria feito empalidecer menos.
Originalmente escrita para o violino, a Sonata em lá maior de César Franck, monumento da música de câmara romântica francesa, não tem, no violoncelo, o mesmo rendimento, sobretudo nas texturas mais agudas da escrita. Mas Yo-Yo Ma fez dela uma leitura absolutamente convincente, de uma melancolia outonal na declamação muito livre do Recitativo fantasia: ben moderato, de extrema ousadia formal. Mas, sobretudo, Stott e ele conferiram contornos muito enérgicos aos dois primeiros movimentos – em especial à inquietação apaixonada do segundo, Allegro, de ritmo ofegante – e, no Allegro poco mosso final, fizeram contrastar a elegância do refrão “dolce cantabile” com o brilho da coda. Depois disso, os três extras, culminando num Gershwin muito descontraído, foram a forma simpática de responder à reação efusiva da platéia.

domingo, 17 de junho de 2007

yo-yo ma, por joão marcos coelho

O violoncelista Yo-Yo Ma é uma das mais reluzentes superstars da música no planeta. Aos 51 anos, é o centro das atrações onde quer que vá: seus concertos têm lotação esgotada com muita antecedência em qualquer teatro do planeta. Não foi diferente aqui; faz tempo que não há mais ingressos para os dois concertos no Teatro de Cultura Artística nesta terça e quarta-feira. Em todas as latitudes, suas apresentações invariavelmente são consideradas “os concertos do ano”. Aqui também não está sendo diferente.
A listagem dos motivos que o levaram ao topo pode soar enfadonha de tão extensa. De fato, seus quinze grammies e mais de cinquenta gravações de praticamente todo o repertório solo, camerístico e concertante para o instrumento fazem deste cidadão do mundo – nascido em Paris de pais chineses, crescido e educado nos Estados Unidos, afilhado do violinista Isaac Stern – o legítimo herdeiro do russo Mstislav Rostropovich no posto de maior violoncelista vivo.
Primeiro aniversário do 11 de setembro em Nova York? Lá estava ele, tocando nos escombros do WTC; forma ao lado de Ronaldo fenômeno como um dos embaixadores da Paz da ONU; e até o folclórico Cosmo Kramer do seriado Seinfeld o citou algumas vezes. Participou, como o trompetista Wynton Marsalis, de desenhos animados (em seu caso, no delicado e inteligente desenho canadense “Arthur”).
A Verdade artística de cada um
Yo-Yo Ma é nota 10 em tudo, mas sobretudo nos seguintes quesitos: técnica diabólica; sensibilidade extraordinária; afinação de assombrar; volume e timbre inigualáveis. Tudo isso sem falar no vibrato, a assinatura pessoal de todo violoncelista. Vamos mais fundo nesta questão do vibrato para clarear as coisas. “O vibrato requer que o violoncelista domine primeiro a capacidade de tocar perfeitamente afinado. Se um jovem violoncelista não possui este domínio, a nota, a cada vez que vibra, soará ácida, acentuando a imprecisão do tom e desviando seus sons harmônicos; o tom exato é nossa versão da verdade artística. A liberdade de vibrar depende desta disciplina, enquanto a expressão puramente impulsiva produz apenas desordem – um exemplo de sabedoria popular que se aplica tanto à mão quanto ao coração”. A citação é de um inesperado ex-colega de Yo-Yo Ma, o sociólogo norte-americano Richard Sennett, num maravilhoso livro intitulado “Respeito” (Record, 2004), que combina autobiografia e ensaio. Sennett foi violoncelista até os 21 anos; tocou com pianistas como Murray Perahia e Richard Goode; abandonou o instrumento por causa de problemas neurológicos em uma das mãos.
Está, portanto, a cavalo para avaliar o talento. “Quando amigos como os pianistas Perahia ou Goode tocavam, eu ouvia algo além de minha apreensão da música; eles faziam pausas e outros aspectos do fraseado, bem como revelavam vozes harmônicas inesperadas, coisa que eu nunca faria. O domínio da técnica musical nos ensina as dimensões objetivas do que se ouve, e na época aceitei que não possuía esta arte. Embora tenha moderado minha vaidade, ter conhecido meus limites não destruiu meu amor pela música – e acho que isto vale para muitas outras pessoas que desenvolvem um amor genuíno pela perícia.”
Amizade e respeito
Mas não basta ser músico de gênio para ser reconhecido e obter “respeito” em termos amplos. Talvez seja uma questão de cabeça. Há músicos que se conformam em repetir durante décadas o mesmo repertório. Como diz Alejo Carpentier, “o virtuose, orgulhoso do seu virtuosismo, termina por querer demonstrar que é mais virtuose do que todos os virtuoses”.
Yo-Yo – amizade, amizade, em chinês – jamais quis prender-se nesta gaiola, ainda que dourada e cheia de cifrões. "Se você fica entediado”, disse ele numa entrevista, “então é porque você se colocou dentro de certos limites e chafurda neles o tempo todo”. Depois de fazer todo o circuito das grandes salas de concerto, das maiores orquestras e maestros do planeta – e de gravar todo o repertório de violoncelo --, ele viu diante de si um futuro de eterna repetição do mesmo. Corria a temporada 1996/7. E Ma, que já tinha no DNA a fusão dos estilos musicais (por ironia ou sintoma, tema da tese de seu pai musicólogo), partiu com tudo para conhecer melhor suas raízes e... a China (sim, ele nada tem a ver com o rolo compressor chinês que nos assola nos primeiros anos do século 21. China para ele era só um país gigantesco no mapa-múndi).
Nada melhor do que as suítes de Bach, o Himalaia de todo violoncelista, para a largada. Ele já as tinha gravado em 1982 (o álbum duplo, por sinal, acaba de ser relançado no Brasil pela Sony). E quando lhe disseram para regravá-las, ele fez o inesperado. Entre as alternativas a) resignar-se a repetir-se; e b) recusar-se e comprar briga com as então poderosas gravadoras – Ma optou por um gigantesco projeto que se transformou numa das obras-primas de sua vida criativa e que melhor o definem: uma série de seis filmes de uma hora de duração cada, inspirados nas suítes de Bach.
Naquele momento, chutou definitivamente o pau da barraca dos bem-comportados. Juntou-se ao reduzido grupo de grandes músicos que no último século tiveram a coragem de dizer não, afirmar sua liberdade, correr riscos, entregar-se à experimentação – viver, enfim, e não “chafurdar” burocraticamente em gaiolas douradas. Flash rápido sobre o Projeto Bach: em “O Jardim Musical”, Ma e a paisagista Julie Moir Messervy “viajam” entre Boston e Toronto tentando criar um jardim inspirado na suíte no. 1; em “O Som dos Cárceres”, calcado na suíte no. 2, recursos de tecnologia virtual colocam Ma tocando num dos cárceres imaginados pelo arquiteto italiano Giambattista Piranesi, contemporâneo de Bach (direção de François Girard, que faria em seguida “32 curtas sobre Glenn Gould”); na suíte no. 3, Ma viaja com o coreógrafo Mark Morris na criação de uma notável coreografia (“Rolando escada abaixo”); na quarta, o diretor Atom Egoyan instaura tramas cruzadas no que chama “Sarabanda”; o ator de kabuki Tamasaburo Bando dança a quinta suíte “Lutando por Esperança”); e o casal premiado de patinação no gelo J. Torvill e D. Dean dança a sexta suíte (“Seis Gestos”).
As maravilhas da
Internet da Antiguidade
Foi uma espécie de alforria. Naquele ano-chave de 1997, Ma também deu o pontapé inicial em seu originalíssimo Silk Road Project, ou Projeto da Rota da Seda. Ou, como gosta de chamar, “a Internet da Antiguidade”. Uma via de duas mãos: rotas de comércio a partir do Oceano Pacífico e através do Oriente Médio e o Mar Mediterrâneo foram fundo no coração da Ásia, levando e trazendo tecnologia, arte, cultura e idéias num longo período histórico. Silk Road, portanto, não é só um CD. Cabe nas seguintes qualificações: cooperativa de músicos, pesquisa de música nova, grupo de gravação e turnês, organização educacional. O balanço de uma década aponta centenas de apresentações e eventos educacionais ao redor do mundo, três CDs e 24 obras encomendadas a compositores de países como Azerbaijão, China, Irã, Mongólia, Turquia e Usbequistão. Ano passado foi lançado o Silk Road Chicago, uma verdadeira “ocupação” da cidade por meio de apresentações e workshops nas escolas e espaços culturais – mais de 70 no último ano.
Filosofia: executar, encomendar novas obras e divulgar a imensa variedade musical das culturas da Rota da Seda. Ou seja, Ma propõe um diálogo entre culturas por meio da música. O pressuposto é que não existe cultura pura no mundo. Ele adora dar o exemplo do tango: suas origens estão nas células rítmicas tocadas por escravos africanos na Argentina; seu instrumento principal, o bandoneón, foi inventado na Alemanha e levado para a América do Sul pelos músicos italianos emigrados.
“A música”, escreve o musicólogo inglês Nicholas Cook em “Music: a very short introduction” (Oxford, 2004) “é um modo não só de obter uma compreensão do outro cultural, mas também de modificar nossa própria posição, construindo e reconstruindo nossa própria identidade durante o processo.” É isso que fascina Yo-Yo Ma. Cook é bom porque também explica o divórcio do circuito da música clássica junto a públicos mais amplos: “ É evidente que o mundo está repleto de diferentes tipos de música; porém, os modos pelos quais pensamos a música não refletem esta situação. Cada tipo de música chega com seu próprio modo de pensar como se fosse o único (e a única música sobre a qual pensar)”. Ele parafraseia Bernard Shaw no maravilhoso aforismo de que “a Grã-Bretanha e os EUA estão separados pela mesma língua” para concluir: “A música pode criar a milagrosa impressão de ir diretamente, como escreveu Beethoven no manuscrito de sua Missa Solemnis, ‘do coração... ao coração’. Mas o milagre de uma pessoa é a ilusão da outra (...) ou seja, está claro que a música pode estabelecer um ponto de contato entre culturas. Mas não pode abolir de imediato a diferença cultural. Ela pode ser encarada como uma ferramenta privilegiada para nos conscientizarmos da diferença cultural; afinal, é sobre um fundo de semelhanças que melhor sobressaem as diferenças. Por isso, em termos musicais, a frase de Shaw pode aplicar-se ao mundo inteiro”.
Dar o primeiro passo em relação ao outro, como faz Yo-Yo Ma, é admitir-se vulnerável. Isso vale para o intérprete, o compositor e o ouvinte. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer fala em “fusão de horizontes” entre eles. Praticar a música de um jeito parecido com o que nós (pobres mortais ouvintes) a ouvimos é realizar uma missão fundamental para o século 21: fazer a inclusão da música na realidade das pessoas, de grupos sociais, da população, enfim.
A magia do improviso sobre as regras
O desafio do intérprete, diz outro filósofo, desta vez o norte-americano Bruce Ellis Benson (em “The improvisation of musical dialogue”, Cambridge, 2004), “é falar em nome dos outros – o compositor, intérpretes do passado e toda a tradição na qual vivemos – e também em seu próprio nome, assim como para aqueles que ouvem. A situação ideal – que provavelmente jamais será atingida – é permitir que a voz do outro fale, sem deixar-se submergir por ela”.
Benson vai mais longe. Diz que intérpretes como Yo-Yo Ma praticam o que o filósofo Kant dizia para o grande compositor fazer: improvisar sobre as regras que determinam a prática musical. É por isso que em seus dois concertos em São Paulo, Ma começa tradicional, com a célebre sonata Arpeggione de Schubert; vem para o século 20 com a belíssima sonata de Shostakovich; começa a tirar a casaca e rompe o clima erudito com o genial porteño Piazzolla e seu Grand Tango; põe uma havaiana para avançar pela villalobiana brasilidade de Egberto Gismonti. E quando tudo parecia como dantes no quartel de Abrantes ele volta para o século 19, larga as havaianas, retoma a casaca e interpreta a versão para violoncelo da célebre sonata de César Franck original para violino.
Não o acusem de pós-modernismo, por favor. Pela diversificação e os saltos tanto históricos quanto de gêneros, o recital de Yo-Yo Ma parece restituir uma prática do século 18, quando se misturava absolutamente de tudo numa apresentação pública – de uma ária de ópera a um movimento de sinfonia, de um quarteto de cordas a um divertimento para cordas. Tanto lá, nos idos do século 18, como hoje, no século 21, o objetivo é o mesmo: não construir uma apresentação orgânica. Aqui, não importa quanto é 2 + 2. É mais interessante e curtido passear pela música. Sem adjetivos. Sem amarras. Sem camisas-de-força. Provocando surpresas. A propósito, sabem como é o título do novo CD de Yo-Yo Ma, cujo conteúdo ninguém sabe até agora, e que será lançado em 31 de julho próximo? “New Impossibilities”.
Em “Respeito”, Richard Sennett comenta de modo inovador a relação cantor-pianista. Ele fala do barítono Dietrich Fischer-Dieskau e do pianista Gerald Moore, mas as palavras aplicam-se à perfeição à nossa dupla Yo-Yo Ma e Kathryn Stott: “No palco o cantor trata o pianista como seu igual. Nos bastidores, a prática de status, prestígio e honra social não predispõem à igualdade; o respeito próprio do artífice é indiferente a isso. Podemos lidar com estes limites tentando tornar a sociedade mais semelhante ao concerto; isto é, explorando as formas de se apresentar como iguais; e demonstrar respeito mútuo. Contudo, o exemplo musical deixa claro como isto seria difícil. Parte do que faz de ambos os homens intérpretes raros é que eles alcançaram a mutualidade; muitos músicos têm o impulso cooperativo, mas poucos conseguem traduzi-lo em som”.