quarta-feira, 25 de abril de 2007
a filha do regimento - crítica de lauro machado coelho
Agilidade de concepção, mão leve da direção, tratamento bem-humorado das situações, que arrancam da platéia as risadas mais espontâneas – essas são as qualidades mais marcantes da encenação de La Fille du Régiment, de Gaetano Donizetti, que estreou no sábado no Teatro Municipal.Sem sentir a necessidade de alterar o contexto histórico – a ópera ainda se passa no Tirol dos primeiros anos do século 19, fiquem tranqüilos – o diretor André Heller-Lopes se permitiu uma saudável dose de liberdade, salpicando, aqui e ali, bem encaixadas referências contemporâneas e brincadeiras com as convenções do gênero lírico, que só serviram para aumentar as divertidas reações do público. Apoiado nos bonitos cenários de Renato Theobaldo, bom desenho de luz de Fabio Retti e figurinos muito adequados de Marcelo Marques, o espetáculo que Heller colocou em cena foi colorido, engraçado, beirando deliberadamente o kitsch, às vezes, mas sem resvalar para o mau-gosto, e obtendo do elenco resposta muito desenvolta.Funcionou muito bem, além do uso do português nos diálogos típicos do opéra-comique – solução a que o público já está habituado – a idéia de Jacqueline Laurence, a única francesa do elenco, dizer as suas falas no original. Isso não só caracteriza o esnobismo de sua personagem, a Duquesa de Krankentorp, como acentua a distância que ela, como aristocrata, coloca entre si mesma e o comum dos mortais.Embora o seu papel seja pequeno, a Marquesa de Birkenfeld de Denise de Freitas foi, vocal e cenicamente, a presença mais marcante em cena. Além de cantar de modo impecável, ela se revelou ótima comediante como a mãe verdadeira de Marie, a órfã coletivamente adotada pelo 21º Regimento de Granadeiros. Nos “cacos” inseridos por Heller nos diálogos, Denise esteve muito engraçada, em especial nos momentos em que chama às falas o maestro como, no fundo, todo cantor gostaria de fazer. A sua contrapartida masculina, Douglas Hahn, por muito tempo ausente de nossos palcos, retorna a São Paulo em ótima forma dramática e teatral, fazendo de modo muito divertido o sargento Sulpice, um dos “pais” de Marie.A personagem título exibiu, nas mãos de Rosana Lamosa, uma dose igual de qualidades e problemas. Boa atriz, criando bem a personagem tal como Heller a imagina, dona de timbre privilegiado, Lamosa não exibiu dificuldades na ornamentação exigida pela parte. Mas a voz, pequena, tendeu a ter pouco apoio nos graves, que soaram foscos e, com freqüência, foram encobertos pela orquestra – e isso prejudicou parcialmente a interpretação de sua grande ária do segundo ato. Mas Rosana sabe o que faz e, quando a partitura vem ao encontro de suas melhores virtudes, o resultado é muito bonito. Foi o caso de “Il faut partir”, no final do primeiro ato, cheia de ecos de Grétry e Auber, prova patente de que Donizetti, poucos meses depois de chegar a Paris, já sabe perfeitamente como escrever no estilo francês. Ali, a típica voz de soprano lírico de Lamosa teve o seu melhor momento em todo o espetáculo.Assim sendo, reunidos os dotes histriônicos de Denise, Douglas e Rosana, a cena mais hilariante – ponto culminante da comédia – foi a da lição de canto, no segundo ato, em que a marquesa tenta em vão ensinar à sua filha redescoberta uma tediosa romança de salão, que vai sendo aos poucos vencida pelo ritmo contagiante do “Rataplan”, que lhe lembra as alegrias simples de quando ela era a vivandeira do 21º Regimento.O desempenho mais difícil de equacionar é o de Flávio Leite (Tonio). Ele não é mau ator, realiza com facilidade as intenções do diretor, é um cantor afinado, com extensão bastante satisfatória, que alcança normalmente as notas muito agudas de sua tessitura – mas o faz de modo irreparavelmente feio, pois o timbre, infelizmente, é ingrato: às vezes demasiado anasalado, às vezes francamente caprino, com legato imperfeito. Pode-se imaginar facilmente Flávio Leite num papel característico como o do Basílio das Bodas de Fígaro. Mas não se sabe prever o futuro da carreira de um tenor ligeiro ao qual faltam as qualidades essenciais do belcanto e que – apesar de sua coragem em enfrentar um papel como o de Tonio, no qual investiu bastante energia – parece inadequado para o tipo do galã, um Nemorino, um Ernesto, um Almaviva. Inteligentemente, André Heller percebeu as limitações do cantor, e deu a seu personagem uma inflexão caricatural que, principalmente na temível “Ô mes amis, quel jour de fête”, fez a seqüência de nove dós soar engraçada e obteve, junto à platéia, resultado aceitável.Feitas as contas, essa Fille du Régiment convence pelo resultado de conjunto de um desempenho homogêneo dos figurantes e do Coral Lírico, pela condução correta do maestro José Maria Florêncio, a que a Sinfônica Municipal responde bem; mas, sobretudo, pela vivacidade de uma encenação esfuziante, principal motivo para que valha a pena ir ao teatro, nestes próximos dias, assistir a esta comédia de Donizetti, que não era montada em São Paulo desde 1894.
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Um comentário:
Não poderia concordar mais com seus comentários. Na minha opinião, a escalação de Tonio foi extremamente infeliz. Essa montagem seria outra com um tenor que pelo menos desse conta do papel.
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