A vida inteira, ele esteve do lado certo da cerca. No dia de 1968 em que os tanques do Pacto de Varsóvia entraram em Praga, para sufocar a rebelião de Dubcek, Rostropóvitch protestou executando, no Albert Hall de Londres, o Concerto para Violoncelo de Dvorák – pilar de seu repertório, de que fez várias gravações, desde a histórica primeira vez, em 1950, com o grande maestro tcheco Václav Talich.
Percorrer a vida de Mstisláv Rostropóvitch é, de certa forma, assistir ao filme da história musical e política da segunda metade do século 20. Ele esteve presente em todos os grandes acontecimentos da vida de seu país, em uma fase muito delicada de sua trajetória. E no pé das nove páginas da edição especial que a revista inglesa Gramophone dedicou a seu 80º aniversário – comemorado um mês antes de sua morte, no último dia 27 – há, como uma linha do tempo, algumas das 240 obras que lhe foram dedicadas, e que ele estreou.
A lista é impressionante. Só ela bastaria para celebrizar um instrumentista que, a essas contribuições para o repertório, somou ainda algumas das mais belas interpretações da literatura básica para o seu instrumento. Com poucas exceções – Bartók é a maior dela – todos os grandes nomes da música contemporânea compuseram para Mstisláv Rostropóvitch, desde a Sinfonia Concertante, de Prokófiev, em 1952, até a Parábola Concertante, de Rodiôn Shtchedrín, em 2002. O bem-amado Shostakóvitch, seu amigo Benjamin Britten, Arám Khatchaturián, Henri Dutilleux, Witold Lutoslawski, Álfred Shnittke, Krzysztof Penderecki, Olivier Messiaen – as mais variadas tendências do desenvolvimento da música de hoje foram por ele defendidas.
E, no entanto, Mstisláv Leopóldovitch quase não veio ao mundo. Ao descobrir que estava grávida, a pianista Sófia decidiu abortar, pois já tinha uma filha pequena, Veroníka, e um novo bebê seria um impecilho para a sua carreira de concertista ao lado do marido, o violoncelista Leopóld Rostropóvitch que, na época, morava em Baku, no Azerbaijão. Por sorte, o tempo já decorrido desde a gravidez impediu a interrupção; e o menino que nasceu em 27 de março de 1927 cedo demonstrou ter herdado o talento dos pais para a música.
Aos quatro anos, já morando em Moscou, ele recebeu de Sófia as primeiras lições de piano. E a partir dos oito, começou o violoncelo com Leopóld, que assentou as bases de sua técnica extraordinária. Em 1940, aos 13 anos, Slava – “glória”, seu apelido premonitório – apresentou-se em público, tocando o Concerto em lá menor de Saint-Saëns. As primeiras aulas de composição, ele as teve com Mikhaíl Tchuláki; e prosseguiu-as com Vissariôn Shebalín, ao entrar para o Conservatório em 1943, um ano após a morte do pai. Ali, foi aluno de violoncelo de seu tio, o famoso Simiôn Kozolúpov (ele era casado com Nadiêjda, a irmã mais velha de Sófia). E teve aulas de composição com Shostakóvitch, seu grande ídolo e amigo, até este cair nas malhas do regime e ser demitido de seu cargo de professor (por “incompetência”!)
Um sucesso atrás do outro marcou a carreira de Mstisláv Rostropóvitch. A graduação aos 19 anos, um ano depois do primeiro lugar no Prêmio Tchaikóvski; a amizade com Prokófiev, Shostakóvitch, Miaskóvski – e com Môishei Váinberg, polonês naturalizado russo, de cuja família foi um dos poucos a não se afastar, quando ele foi vítima dos expurgos stalinistas. E essa carreira ganhou impulso novo a partir do casamento, em 1955, com uma das maiores estrelas do Bolshói: a soprano Galina Vishniévskaia, que ele conhecera em Praga. Acompanhada pelo marido, Galina, em seus recitais, deixou documentadas preciosidades do acervo russo de canção – Glinka, Tchaikóvski, Rachmáninov. juntos, eles estrearam também ciclos que Shostakóvitch escreveu para ela.
Os 52 anos da união de Galina e Slava foram cimentados não só pela arte que eles tinham em comum. Mas também, e principalmente, pela cumplicidade de quem teve a coragem de nunca se calar, nos piores momentos da história de seu país, e de quem compartilhou o sofrimento, em conseqüência dessas atitudes de destemor. Eles foram praticamente os únicos a estender a mão a Aleksandr Soljenýtsin, hospedando-o em sua datcha (casa de campo), quando ele foi expulso da União dos Escritores por ter publicado, no exterior, o Arquipélago Gulag, em que denunciava o universo concentracionário soviético, e que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1970.
E Rostropóvitch foi o autor de uma famosa carta-aberta ao Pravda – ignorada por esse jornal, mas publicada pelo New York Times de 16 de novembro de 1970 –, em que defendia Soljenýtsin, e protestava contra outros abusos, entre eles a proibição da poesia de Iósif Bródski, dos filmes de Andrêi Tarkóvski, e da ópera A Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, de Shostakóvitch (a gravação da versão original dessa ópera, que o Brasil, por coincidência, está ouvindo pela primeira vez, hoje, em Manaus, foi feita por ele e Galina, no Ocidente, em 1979, para o selo EMI).
Foi pesado o preço que ambos tiveram de pagar. Concertos de Rostropóvitch em Moscou ou Leningrado eram subitamente cancelados ou transferidos para Alma-Atá, do outro lado do mundo. Galina chegava ao Bolshói para cantar a Tatiana do Ievguiêni Oniéguin, seu maior papel, e descobria que seu nome não estava no programa. Em 1973, eles tinham um contrato com o selo Melódyia para gravar a Tosca. Logo depois de iniciadas as sessões de estúdio, um mensageiro da ministra da Cultura, Iekaterína Fúrtseva, chegou com a notícia de que a gravação tinha sido cancelada. Dias depois, eles souberam que o registro estava sendo feito por Tamára Mláshkina, com a regência de Mark Érmler (essa ópera também, Slava e Galina gravaram em 1979, para a EMI, com Franco Bonisolli e Matteo Manuguerra).
Nessa Tosca russa cantam Iúri Mazurôk (Scarpia) e Vladímir Atlántov (Cavaradossi). Em 1969, o casal os tinha levado para a triunfal apresentação do Ievguiêni Oniéguin em Paris, que resultou numa magnífica gravação para o selo Angel. Mas fidelidade não era moeda muito corrente num país em que a regra era virar as costas àqueles que caíssem em desgraça. Finalmente, na primavera de 1974, quando o ar se tornara irrespirável, Slava, Galina e as duas filhas receberam a autorização de sair da URSS. Estavam em Paris quando lhes chegou a notícia de que a sua cidadania soviética tinha sido cassada.
Por algum tempo, viveram como apátridas, viajando com um passaporte especial da Casa Grimaldi, de Mônaco – foi assim que vieram pela primeira vez ao Brasil, em 1978. Depois, naturalizaram-se suíços. E só em 1990 puderam voltar à Rússia e reassumir a cidadania perdida 15 anos antes. No Ocidente, Rostropóvitch continuou incansável, gravando, regendo a Sinfônica de Washington de 1977 a 1994, e encomendando obras novas a Luciano Berio, a Leonard Bernstein, a Andrzej Panufnik, a James McMillan. E, em casa, a partir do momento em que lhe foi permitido retornar, colaborou ativamente com o processo de reestruturação de seu país, após o colapso da URSS.
A Fundação Rostropóvitch-Vishniévskaia investiu somas consideráveis no apoio a crianças carentes. Uma de suas iniciativas foi um gesto de carinho e de gratidão: em maio de 2002, Slava comprou em São Petersburgo, para ali instalar um museu, o apartamento nº 7, da Marat Úlitsa. Foi ali que seu amigo Shostakóvitch morou entre 1917 e 1936.
Em 7 de abril deste ano, circulou pela primeira vez a notícia de que Mstisláv Rostropóvitch estava seriamente doente. Estivera internado em um hospital parisiense, e a medicina ocidental lhe poderia oferecer os mais modernos recursos. Mas foi para Moscou – e nessa escolha foi russo até o fim – que quis voltar. Morreu na rússkaia ziemliá, a terra russa da qual, mesmo expulso, nunca arrancou as suas raízes. E nela repousa, no cemitério de Novodiévitchi, o mesmo onde descansam Prokófiev e Shostakóvitch.
Discografia sugerida:
- Dvorák – Concerto para violoncelo (Giulini) .
● Shostakóvitch – Concerto nº 1 – Philadelphia/Ormandy (Sony)
● Brahms – Sonatas para Violoncelo – com Rudolf Serkin (DG)
● Beethoven – Sonatas para Violoncelo – com Sviatosláv Richter (EMI)
● Henri Dutilleux e Witold Lutoslawski – Concertos para Violoncelo – duas grandes encomendas contemporâneas (EMI)
● Bach – as Suítes para Violoncelo solo (EMI)
● Shostakóvitch – Sinfonia nº 4 – parte da integral com a Sinfônica de Washington (Teldec).
● Tchaikóvski – Ievguiêni Oniéguin – com Vishniévskaia, Atlántov, Mazurôk (EMI)
● Shostakóvitch – Lady Macbeth de Mtsensk – com Vishniévskaia, Gedda (EMI).
● o álbum da EMI Classics com ciclos de canções – Tchaikóvski, Mússorgski, Rachmáninov, Shostakóvitch – que ele gravou com Vishniévskaia.
sexta-feira, 4 de maio de 2007
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