Sufocada pelo tédio espesso da vida na província; devorada por uma paixão que a leva a todos os extremos; humilhada pela prisão, o degredo e, sobretudo, pela traição do homem que ama – cada uma das etapas da evolução psicológica de Katerína Izmáilova foi recriada, de forma impressionante, por Eliane Coelho, no palco do Teatro Amazonas. Num espetáculo que o maestro Luiz Fernando Malheiro dedicou a Mstisláv Rostropóvitch, seu incansável defensor, A Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, a ópera de Dmitri Shostakóvitch que é um divisor de águas na história da música soviética, subiu à cena, domingo, em Manaus, pela primeira vez no Brasil.
Às inflexões de uma voz muito flexível, que sabe adaptar-se instintivamente à natureza íntima dos papéis que interpreta, Eliane somou seu talento natural para a cena. Katerína é uma personagem talhada na medida para a atriz que ela é. Da ária do primeiro ato, em que a mulher frustrada lamenta a sua solidão, ao lancinante monólogo do último ato, em que ela compara a sua alma às águas negras de um lago escondido no fundo da floresta, Eliane ofereceu, da mulher forte retratada por Lieskóv s Shostakóvitch, um retrato coerente e cheio de vibração humana.
Nisso foi apoiada, todo o tempo, pela regência de Malheiro que, da Amazônia Filarmônica, obteve uma execução limpa e precisa. Nas mãos de Malheiro, a orquestra teve grandes momentos. O interlúdio que prepara a cena de amor do segundo ato, por exemplo e, em especial, a seqüência em que Shostakóvitch faz deliberada referência ao Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler; ou o magnífico interlúdio que precede a cena da delegacia, no terceiro ato – para só citar alguns trechos.
A Katerína de Eliane foi muito convenientemente ladeada por Martin Mühle (Serguêi, o amante) – cuja voz desenvolveu-se num lírico spinto muito expressivo; e Marcos Paulo (Zinóvyi Borísovitch), que criou bastante bem o marido, fraco, indiferente, dominado pelo pai. Muito decepcionante, ao contrário, foi o Borís Izmáilov do russo Oliég Miélnikov. O timbre não é intrinsecamente mau; mas o cantor parece já estar em declínio: sua voz se esgarça em determinadas passagens e ele não consegue sustentar bem as notas em certas posições. Ao contrário de seus companheiros de elenco, além disso, Miélnikov é um ator de recursos muito limitados.
Essa má escolha, porém, não invalidou o equilíbrio de um elenco muito entrosado nos papéis menores: Luciana Bueno (Aksínia) e Eliane Martorano (Soniétka); Steven Bronk (o pope, uma saborosa vinheta cômica), Sérgio Weintraub (o bêbado que descobre acidentalmente o cadáver de Zinóvyi); Eric Herrero (o professor “niilista”, na delegacia) ou Leonardo Neiva, excelente caracterização do Chefe da Polícia, que protesta contra os salários pequenos e as propinas insignificantes. O registro de Luka Debevec-Meyer não corresponde ao baixo profundo requerido pela partitura para o Velho Condenado; mas seu timbre é muito bonito, e ele conferiu muita dignidade ao personagem, que é um porta-voz do compositor no monólogo do último ato, em que ecoa a imagem da URSS convertida em um gigantesco campo de concentração pela tirania stalinista. Cabe assinalar também o desempenho muito satisfatório do coro, ao longo de todo o espetáculo.
Pretensões simbólicas não muito claras – ou às vezes óbvias – tornaram dispensáveis os penduricalhos que descem do teto – uma sinistra borboleta; um cavalo destripado; a letra cirílica que, na antiga ortografia, era usado no fim de palavras terminadas por consoante – ou certas projeções, como o cavalo em disparada no final (uma imagem da liberdade só adquirida na morte?). De um modo geral, a montagem de Caetano Vilela cresceu gradualmente, ato a ato.
O primeiro ato foi prejudicado pela iluminação errática e a tendência ao modismo, comum em encenações contemporâneas, de ambientar certas cenas num breu quase absoluto, cansativo e dramaticamente ineficientes (a cena do assédio a Aksínia é o caso típico). Isso se estabilizou a partir do segundo ato; e houve, no terceiro, momentos muito satisfatórios: a cena da delegacia, em que se ressaltou a ironia com que o libreto descreve a corrupção e o autoritarismo das autoridades; e a do casamento, colorida, muito valorizada pelos bonitos figurinos de Chris Aizner e Olinto Malaquias. De grande impacto foi também o último ato, em que se viram bem resolvidas as sugestões da planície siberiana deserta, e do acampamento de prisioneiros à beira do Volga, em que Katerína se atira com Soniétka, a forçada jovem pela qual Serguêi a trocou.
Uma vez mais o Festival do Teatro Amazonas contribuiu para a história da produção de ópera no Brasil ao nos fazer ver, pela primeira vez, um dos títulos mais fortes do repertório do século 20. A interpretação de Eliane Coelho, a concepção musical de Luiz Fernando Malheiro juntaram-se para fazer dessa Lady Macbeth um espetáculo marcante.
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